Entrevista a Vasco Pulido Valente
(in Expresso 17.11.2007)
Por que escolheu morar neste bairro?
Era barato e a construção é boa. Eu e o porteiro, um homem extraordinário de grande coragem e de grande carácter, fomos as primeiras pessoas a habitar este prédio. Já cá estamos há 25 anos.
Tem o Colombo mesmo à porta. Alguma vez lá foi?
Não frequento. Os restaurantes são muito maus e tenho horror a fazer compras. Vou lá comprar sanduíches e coisas assim, «junk food».
Nem à Fnac vai?
Pouco. Compro livros na Amazon.
Já se «googlou»? Sabe que tem 61 mil entradas?
Não sabia. Já o fiz e apareceu-me uma coisa desconexa. No que diz respeito à Internet continuo a ser muito conservador. Quando tenho uma dúvida prefiro consultar uma enciclopédia.
Aos 50 anos publicou «Retratos e Auto-retratos», onde se interroga se ainda haveria alguma coisa para fazer aos 65 anos. E há?
Pouca coisa.
Por que resolveu escrever sobre quem era aos 50 anos?
Não resolvi. O Esteves Cardoso, na altura director da «K», desafiou-me e lá acabou por me convencer a escrever aquilo.
Utilizou um registo intimista, pouco habitual na sua escrita. Foi difícil?
Nem por isso, levei uma tarde.
Que livro é este, «Ir para o Maneta», que vai publicar agora?
Foi feito a partir de um ensaio que escrevi entre 1973 e 74, sobre a revolta popular de 1807-1814 contra os franceses. Depois da edição portuguesa da minha tese de doutoramento, O Poder e o Povo, andava muito preocupado com a relação entre a acção popular e a organização. Agora teve uma revisão muitíssimo mais profunda e é só parte do ensaio original.
Quem era o «Maneta»?
Um general de Junot, chamado Loison. Não tinha um braço. Era conhecido assim e foram as tropas dele que fizeram as grandes campanhas de contraterrorismo em resposta à rebelião popular de 1807. Tinha uns métodos drásticos. Para dar o exemplo, chegava a uma aldeia e matava velhos, mulheres e crianças. Matou a população de várias aldeias. De tal maneira que ficou a expressão: «ir para o maneta», significa morrer.
O «Maneta» quase não aparece.
A personagem é o povo. Não tenho necessariamente de contar a história do Loison. É a história das pessoas que vão para o maneta.O seu avô materno era jacobino e partidário de Afonso Costa. Privou com ele?
Muito. Eu tinha 23 anos quando morreu.
Foi a esse avô que foi buscar o nome Pulido Valente?
O meu nome civil tem uma cacofonia e duas sibilantes: Vasco Correia Guedes. É feio!
Quando adoptou Pulido Valente?
Aos 16, 17 anos, quando comecei a escrever. Fazia todo o esforço para ter uma prosa fluente e foneticamente boa, portanto ia logo contra o nome. Comecei a escrever artigos para os jornais da universidade e aquilo irritava-me.
O seu pai achou graça?
Não. Também não se zangou. Há pessoas que resolveram embirrar com isso. Essa história do meu nome é uma coisa ridícula. Alias, é muitíssimo vulgar nos escritores! Como todos os historiadores, sou um pouco escritor, é um género literário.
Considera-se um grande escritor?
Não me considero um grande historiador, é natural que não me considere um grande escritor. Não fiz uma grande carreira de historiador
Porquê?
Porque a história portuguesa é uma história paroquial. Os grandes acontecimentos que mudaram o mundo não aconteceram em Portugal.
Os Descobrimentos não mudaram a História?
Ah, sim! Mas não sou um historiador económico, sou um historiador político. Daí que estivesse interessado em grandes temas, como a Revolução Francesa, o nazismo, as duas Grandes Guerras, etc.. Quando comecei não se admitiam teses sobre a Europa. E a mim não me interessava escrever sobre história portuguesa.
Mas passou a vida a fazê-lo.
Pois passei. Infelizmente.
Um historiador disse que trocava a vida por um dia
Roma, com certeza. Durante as guerras civis, no fim da república.
Seria César?
De maneira nenhuma! Escolheria o papel de um senador bem no centro da política. Talvez um dos senadores cesaristas.
E se fosse no século XX?
Gostaria de ter estado um dia no cume do poder de Hitler para observar como era aquela gente. Mas não como alemão. Como um embaixador americano, para ver se percebia melhor. Há muitas coisas que ainda não percebo e já li muito.
Quantos livros tem?
Não faço ideia. Todos os anos deito fora uns 200, 300, para ganhar espaço.
Deita fora livros?
Vendo a alfarrabistas e dou alguns.
Lembra-se dos primeiros livro que leu?
A Condessa de Ségur, com certeza. Ainda me lembro do nome do burro de Memórias de um Burro, o Cadichon.
Com que idade foi para a escola?
Talvez quatro, cinco anos. O meu pai trabalhava na Robialac, era engenheiro químico e director fabril. Foi o emprego dele até ao fim da vida. A fábrica era numa pequeníssima quinta, em Gaifães da Maia. Tinha 14 operários. Isto passava-se em 1947. Estive lá ano e meio. Os meus pais acharam que precisava de ir para a escola e puseram-me num colégio interno em Carcavelos, o St. Julian’s School.
Custou-lhe a adaptar-se?
Um bocadinho. O meu avô ia buscar-me aos fins-de-semana. Entretanto a fábrica foi transferida para Sacavém e os meus pais vieram para Lisboa. A minha infância foi um bocado sui generis. Lia muito. Os meus pais tinham uma vida austera, não eram muito sociáveis. Até certa altura, deram-se com os amigos comunistas.
Eram militantes activos. Recebiam clandestinos?
Então não recebiam!
Privava com eles?
Claro. A minha mãe levava os filhos do Octávio Pato ao médico. Tinha facilidades, era filha do meu avô Pulido Valente.
O Álvaro Cunhal ia a sua casa?
Não. Mas os meus pais conheciam-no muito bem. Os meus pais recebiam gente. Havia lá um quarto que estava sempre cheio de militantes. Só comecei a ter uma vida social minha na faculdade. Também entrei muito novo, aos 16 anos.
Era bom aluno?
Não. Nunca fui.Tinha negativas?
Tive duas. No 5.º ano do liceu fiquei tapado por faltas. No final do 4.º ano já tinha sido expulso por mau comportamento do Liceu Camões e passei para o Pedro Nunes, não punha os pés nas aulas, faltei a dois testes, daí as negativas. Para o meu pai, uma negativa era tão impensável como passear nu no Rossio. Acusou-me de «ser um vadio e um parasita» - palavras dele - e, para salvar o ano, fui imediatamente exilado para o colégio Nuno Alvares, em Tomar, uma espécie de reformatório. Foi um castigo à séria e uns meses muito infelizes.
Sobre si escreveu: «Era velhíssimo na adolescência, adolescente na maturidade…»
Essa frase tem a ver com os hábitos que tinha. Não fazia o que as crianças normais fazem. Não havia oportunidade. Os meus pais davam-se com aquelas pessoas, que não tinham filhos ou filhas que me interessassem.
Era um solitário?
Sim. E durante muitos anos gostei de viver sozinho. E não é só gosto, é uma necessidade. Quando vivia conjugalmente com alguém, se não conseguia estar um ano ou dois sozinho, começava a sentir falta, encorajava a outra pessoa a viajar, por exemplo.
Não é possessivo.
Não era. Agora sou. Mudei um bocadinho com a idade.
Já precisa das pessoas?
Da pessoa.
No seu casamento com a jornalista Constança Cunha e Sá, com que casou duas vezes, viveram em casas separadas.
Já não sou muito assim. Não gosto tanto de viver sozinho como gostava.
Voltando ao comunismo. Os seus pais tentaram doutriná-lo?
A mim? O doutrinamento não se faz assim, aos dez anos uma pessoa não descola dos pais. Comecei cedíssimo a ler livros sobre política.
Foi contaminado por essa formação?
Não muito. Privava com o meu avô, que exercia uma influência antagónica. O avô Pulido Valente foi um dos primeiros seguidores do positivismo lógico e da filosofia analítica.
Foi discípulo do Júlio de Matos…
Em todas as conversas que tínhamos insistia muito comigo e perguntava-me: «O que queres dizer com isso? Onde é que leste?» Isto imunizou-me contra o marxismo.
O seu avô foi uma influência mais determinante do que o seu pai?
Intelectualmente sim. Era muito bom professor, tinha muita paciência. Ensinou-me a ouvir ópera e a ler. Tinha aquela cabeça que não me deixava vagabundear, nem viver instalado na asneira, e na imprecisão. Nem na vaidade.
Participou nas lutas académicas de 1962. Posicionava-se onde?
Fazia parte de um «grupúsculo». E todos os «grupúsculos» eram, ou diziam-se, de extrema-esquerda. Eu pertencia a uma coisa chamada MAR (Movimento de Acção Revolucionário) - achavam este nome muito bonito - cujo chefe era Jorge Sampaio.
E o que faziam?
Nada.
Teve problemas com a PIDE?
Fui preso uma vez, uns dois meses, por causa de um brincadeira estúpida de uma amiga. Ela foi à Jugoslávia e escreveu uma carta a não sei quem. Por cima de um envelope escreveu: «Camaradas, a revolução está a caminho». E mandou o envelope para mim. Aquilo via-se em relevo, de maneira que fui parar a Caxias.
Esteve dois anos em Direito e desistiu. Na sua cabeça qual seria o seu percurso profissional?
Não sabia. Sabia que queria escrever. Desisti de Direito, fui para Inglaterra, voltei e fui estagiar para o «Diário de Lisboa». Estive lá dois meses, houve uma greve, que foi contada em dois romances onde também apareço, e que acabou numa demissão de uma série de gente. Por solidariedade, também me demiti.
Vivia com os seus pais?
Às vezes sim, outras, não. Houve um período em que aluguei casa com amigos.
Tinha carro?
Nem pensar!
Mas queria ter um Aston Martin…
Isso era porque a Françoise Sagan tinha um Aston Martin e guiava descalça. Era a minha ideia de escritor.
Formou-se
O curso era mau e chato. Tinha maus professores e um programa péssimo. Filosofia era mais ou menos a mesma coisa.
Viveu a revolução sexual dos anos 60?
Fui para Oxford em 1968. Essas coisas já tinham acontecido e não havia vestígios quando lá cheguei. E estava casado.
Experimentou alguma droga?
Fumei um charro, claro! Odiei. Fique enjoadíssimo, vomitei. Uma vez fui chamado a casa de uns amigos que tinham tomado LSD e depois tomaram uns remédios para sair daquele estado e houve para lá umas cenas de faca e alguidar. Não sou da cultura da droga, sou da cultura do álcool.
Com que idade casou a primeira vez?
Aos 23 anos.
Escreveu que queria casar com a mulher mais bonita do mundo.
E a Maria Cabral era uma mulher lindíssima e talentosíssima.
Quanto tempo durou esse primeiro casamento?
«On and off», sete anos.
Foi um casamento tradicional?
Digamos que cada um fazia mais ou menos o que lhe apetecia, que é uma maneira civilizada de descrever uma situação.
Tiveram uma filha.
Patrícia Cabral. Também não usa o meu nome.
Têm uma relação próxima?
Não.
Participou no 25 de Abril?
Tinha regressado de Oxford. Fui para a rua ver. Não percebia muito bem o sentido daquilo. Não conhecia aquela gente, nem percebia o que queriam. Não estava no segredo das coisas. Suponho que ninguém estava. Na altura vivia com a Maria Filomena Mónica e combinámos: ela iria esperar o Soares e eu o Cunhal. Quando cheguei ao Cunhal, lá estavam a minha mãe e todos os velhos comunistas da minha infância.
Comoveu-se?
Eu? Não. Não sou muito dado a emoções. Sou mais dado a angustias e ansiedades. Sou daquelas pessoas que verifica três vezes se fechou a porta e a torneira antes de sair de casa.
Foi militante do PSD?
Fui durante a AD. Saí no governo de Balsemão, tornei a ser militante com Fernando Nogueira e depois não precisei de me demitir. Houve uma renovação dos ficheiros, não me reinscrevi.
Como conheceu Sá Carneiro?
Por acaso, num restaurante
Recebia como profissional do PSD?
Não, como membro do governo-sombra.
E chegou a secretário de Estado.
Primeiro fui secretário de Estado-adjunto. Título intraduzível noutras línguas. E uma das funções que tinha nesse cargo extraordinário era arranjar um secretário de Estado da Cultura. Não consegui.
Quem é que convidou?
Isso não vou dizer. O Sá Carneiro começou a enervar-se porque tinha de apresentar a lista de governo ao Eanes, com quem na altura não se dava nada bem. Tinha de a entregar até às oito e ligou-me: «Já tem o SEC?». «Não». «Então vai você». «Eu, porquê?». Ele disse que não podia levar a lista incompleta e como eu estava encarregue de arranjar um SEC era justo que fosse eu. Ainda lhe disse: «Olhe que vai ser um fiasco». E ele: «Se for um fiasco sempre se ganha tempo».
Teve um ano no governo, viu o poder por dentro. O que aprendeu?
Não há ministro que chegue ao governo e que não queira ser bem visto pela casa, como eles dizem. E querem duas coisas: promoção e espaço. O que aquela gente quer é mais espaço e mais pessoal. E em 90 por cento dos casos fazem coisas que não precisam de ser feitas.
A sua experiência como deputado correu mal.
Correu mal e conta-se rapidamente: fui trabalhar com o Fernando Nogueira porque achava que era necessário fazer algumas reformas urgentes pós-cavaquistas. Pouco depois, Fernando Nogueira demitiu-se e demiti-me também. Acabou.
Apoiou, em 1985, a candidatura de Mário Soares à presidência e fez parte do MASP (Movimento de Apoio Soares à Presidência). Porquê?
Achava necessário que fosse eleito. Foi um período simpático e diverti-me muito, estavam lá os meus amigos da altura. Tenho um grande respeito e admiração pelo doutor Soares. E ainda por cima gosto muito dele. Porque podia ter estes sentimentos e detestá-lo.
Votou nele nas últimas eleições?
Por causa da coluna no «Público» nunca digo em quem voto.
Nas últimas presidenciais tentaram ter o seu apoio para outra candidatura. Não almoçou com Cavaco Silva?
Almocei com ele, sim. Até fui eu que lhe pedi que se candidatasse. Porque achei que Portugal precisa de um polícia.
O poder interessa-lhe?
Não.
Mas tem poder ou, se preferir, contra-poder.
Quanto muito tenho influência. Poder é fazer ou impedir que outros o façam. Se quiserem uma metáfora, sou um chefe do estado-maior, não o comandante.
Foi almoçar com Cavaco antes dele se candidatar. Se isso não é ter poder…
Fui almoçar com o Cavaco Silva porque os grandes negócios em Portugal fazem-se com o Estado ou com informação que vem do Estado. Só a presença dele em Belém coíbe muita gente.
Os políticos pedem-lhe conselhos antes de tomarem de decisões?
Não. As conversas com os políticos não servem para decidir nada. Na minha vida tive duas ou três conversas importantes com políticos.
E com Sócrates, já teve alguma conversa?
Nem me lembro de o ter visto em pessoa.
É um político que ficará na história?
O Sócrates?! Não. É de uma pavorosa mediocridade. Pior: é um homem que tem uma linha de pensamento convencional. Que assenta em todos os lugares-comuns deste tempo e reproduz de uma maneira tosca esses mesmos lugares-comuns.
Mas é um Governo com impulso reformador.
A mim não me parece. Estas coisas do ensino e da investigação não levam a nada. Qualquer pessoa que tenha passado umas semanas numa genuína universidade não pode olhar para isto senão com tristeza.
O que pensa do actual momento do PSD e do novo líder, Luís Filipe Menezes?
O regresso de Santana Lopes só pode complicar as coisas. Vi o primeiro debate na Assembleia da República e achei aquele ajuste de contas com Sócrates lamentável. Com o Menezes estou muito surpreendido. Está mudo e quedo. Disse meia dúzia de coisas sem importância e ainda não fez nada. Não sei do que está espera ou se está a planear alguma coisa.
Enquanto cronista, a sua principal característica é o pessimismo.
Não concordo nada. Optimismo e pessimismo são sentimentos que eu não tenho. Às vezes parece-me que a vida portuguesa vai correr bem, outras vezes parece-me que vai correr mal, mas isso é irrelevante. Não escrevo fundado num sentimento ocasional.
Mas tem uma maneira de ler o mundo em que só vê o que está mal.
Não. Tento ser realista e ver as coisas como elas são e não como eu gostava que elas fossem. Se as coisas são más, então…
Nunca ninguém se zangou consigo por causa das crónicas?
De políticos não me lembro de ninguém. Há duas pessoas que se zangaram, a Clara Ferreira Alves…
Pôs-lhe um processo por causa do que escreveu no seu blogue, «O Espectro». Onde insinuava que não era licenciada.
Foram vinte linhas. É diferente do que escrever para um jornal. Mas está em segredo de justiça, não vou falar nisso.
E a outra pessoa?
Foi o Miguel Sousa Tavares.
Como sabe que ele se zangou?
Encontrei-o num restaurante e não me falou.
Vai ler «Rio das Flores»?
Já li.
E?
Não digo nada. Irá perceber em breve.
É verdade que, tal como o próprio contou na TSF, conheceu Miguel Sousa Tavares quando o convidou para escrever um livro sobre a sua passagem pela cultura?
É. Tinha lá uma data de papelada, queria contar aquilo mas não tinha tempo, nem paciência para o fazer. Não queria um elogio histórico. Queria um livro, que iria superintender.
Porque é que lhe respondeu num artigo inteiro? Não bastava uma nota?
Porque ele disse nessa entrevista ao «Expresso» que eu tinha dito mal do Equador sem o ter lido. Era mentira. As pessoas em Portugal gozam de total impunidade. Escrevem um livro e se alguém vem dizer que o livro é mau, tentam intimidar. Disseste mal de mim? Então és bêbado! Ou mais sofisticado: és invejoso. Não percebem que se discute o livro e não quem o escreveu.
Sentem as críticas como ataques pessoais?
Podem sentir o que quiserem. Não estou interessado nos sentimentos de pessoas que não conheço.
Mas pessoalizou. Disse que o protagonista era uma espécie de super-Miguel.
Isso é legítimo. Foi uma hipóstase do Miguel. Se algum dia eu escrever um romance em que o herói é um conselheiro político de grande subtileza, de grande visão, um jornalista extraordinário, um crítico que foi para Oxford, o super-Vasco, as pessoas têm o direito de dizer «o velhote começa a estar cheché». Se disserem que eu só escrevo asneiras, não me ofendo.
Ofendeu-se com a Maria Filomena Mónica quando ela descreveu a vossa vida íntima na autobiografia «Bilhete de Identidade»?
Isso sim. Passou a linha entre o público e o privado. As coisas privadas só se podem escrever com autorização.
Sabia o que ela estava a escrever?
Sabia. Almoçávamos todas as semanas e ela contava-me o que andava a escrever.
Tentou impedi-la?
Sabia que ela estava a escrever as memórias, não em que termos.
Leu o livro?
Li tudo.
Magoou-o?
Magoou. Uma coisa é a crítica a um livro ou a uma crónica. Outra, é ler nos jornais a minha vida privada. É outro universo. Se a Mena Mónica escreve as memórias, é obvio que vai contar alguma coisa sobre a minha vida. Mas a linha de separação entre o público e o privado não deixa de existir. Era amigo da Mena há 35 anos, pensei que percebesse esta coisa básica. Por isso, nunca me preocupei quando soube que estava a escrever as memórias e também por isso fiquei muito espantado quando as li. Ainda bem que isto me sucedeu aos 65 anos, bem casado. Se me tem sucedido aos 40 estava tramado. Cada vez que tivesse um milímetro de intimidade com uma senhora ficava aterrorizado porque ia parar tudo aos jornais.
É o que aconteceu ao Pinto da Costa.
Só acontece a pessoas famosas, é duplamente irritante. Perguntaram-me o que há para fazer aos 65 anos e respondo: há pouco. Mas não tem muita importância. A sociedade está a tomar formas tão horríveis que não me apetece viver muito mais neste mundo.
O que quer dizer?
Se me dissessem «tens mais 20 anos de vida», não, muito obrigado. Nem dez. Mais dez anos a aturar esta gente? Nem pensar.
Tem remorsos?
Não. Nunca fiz grandes patifarias na minha vida. Fiz coisas ridículas e censuráveis. Coisas más, não. Acho eu.
Qual é a sua obra que mais gosta?
Três: O Poder e o Povo, A República Velha e Glória. Em Glória, até certo ponto, consegui reproduzir uma época e um mundo cultural, como se pertencesse a esse mesmo universo. Deu-me um trabalhão enorme.
Apetece-lhe biografar mais alguém?
Estou a escrever a biografia sobre o Eça. Li tudo dele.
Qual é o livro de que mais gosta?
De Os Maias, claro. Por isso mesmo. Não há frieza, nem perspectiva. Há muitas coisas que se vêem pior ao perto do que ao longe.
O que é que o diverte?
Tanta coisa! Divertem-me imenso alguns escritores, os Monty Phynton… e o Eça, claro. Os portugueses, e eu também, são sobretudo sarcásticos. Eu preferia ser irónico. O sarcasmo não me diverte tanto.
Gosta do humor dos Gato Fedorento?
Não. Socialmente e politicamente são neutros.
Portanto, o único português que o diverte é o Eça.
Etiquetas: The Man
1 Comentários:
Adoro as entrevistas do Vasco Pulido Valente, e, em 2007, conseguiram extrair-lhe mais do que um sim ou um não; é brilhante, igual a ele mesmo, como só ele sabe ser. Um grande bem haja!
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