HELENA MATOS
Na Escolinha do Pensamento Único
Por HELENA MATOS
Sábado, 06 de Novembro de 2004
"Na vitória de Bush existem dados que de modo algum podem ser ignorados e um deles é a derrota do unanimismo. Do pensamento único. Do politicamente correcto. Ou de como se quiser chamar a essa arrogância que tem levado milhões de almas a considerarem que apenas os estúpidos, os ignorantes, os intelectualmente intoxicados e, claro, os que representam obscurantissimos interesses discordam das suas teses. Aliás uma das características do pensamento único é essa estruturação em função do inimigo externo. É a esse inimigo que dedicam grande parte dos seus discursos, subestimando um programa político. Nazis, fascistas e comunistas, expoentes ideológicos do pensamento único, são disso um bom exemplo. Ironicamente é pela sua relação com os inimigos que acabaram a ser julgados na posteridade: os campos de extermínio, a tortura, as execuções sumárias - ou seja as formas a que recorreram para se desembaraçarem dos inferiores - sobrepõem-se àquilo que fizeram ou se propuseram fazer com aqueles que os apoiavam.
Nas democracias, os continuadores desta gente de convicções sólidas sobre o QI e o carácter dos outros, são os zelosos arautos do politicamente correcto. E estes arautos instituíram Bush como o inimigo. Logo ao mesmo tempo que o depreciavam intelectualmente, apresentavam-no como isolado do mundo da cultura. Listas de cantores, realizadores de cinema, jornalistas, escritores... foram-se declarando anti-Bush e essa tomada de posição era apresentada como um acto de resistência pese ser absolutamente consensual no mundo de que provinham essas pessoas. O aval dos intelectuais e dos artistas a determinados líderes e a sua rejeição a outros funciona não apenas em termos obvia e directamente mediáticos mas também de forma muito mais profunda apelando a que haja uma identificação entre o líder apoiado e a inteligência. O líder rejeitado, antes pelo contrário, é apresentado como anti-cultura, anti-inteligência. No mundo do pensamento único está instituído que Bush é estúpido pois Michael Moore - tão culto e que tem tido tantos prémios de cinema - provou que ele é estúpido. Faz tanto sentido acreditar na estupidez de Bush a partir dos filmes de Michael Moore quanto presumir que os alemães eram uma raça superior após visionar os documentários de Leni Riefenstahl, mas uma das características do pensamento único é precisamente o conseguir renovar constantemente os objectos dos seus ódios e paixões, sem nunca questionar a sua disponibilidade para acreditar naquilo que quer e precisa que seja provado.
Bush será provavelmente tão ignorante e estúpido quanto Jimmy Carter. Exactamente esse que foi presidente dos EUA e que os europeus transfomaram dum produtor de amendoins incapaz de perceber o mundo num misto da bondade da Madre Teresa de Calcutá e da inteligência de Albert Einstein, desde que declarou que o escrutínio na Flórida podia não ser fiável. Mas esse mesmo ex-presidente norte-americano, quando estava na Casa Branca chamou com carácter de urgência, o físico Fran Press. Porquê? Carter tinha lido num jornal "Do Sol chegam menos neutrões do que se esperava". O conselheiro científico confrontou-se com um alarmado Carter que lhe perguntou "O que podemos fazer, Press?" Será esta história de pacotilha verdadeira? Não faço ideia mas é do mais elementar bom senso não se avaliar por este episódio a cultura de Carter, sendo que me parece absolutamente normal que Carter tenha reagido como reagiu. Mas quantas pequenas histórias como esta temos ouvido com o propósito de corroborarem esse dogma inquestionável que é a estupidez de Bush?
A este subestimar constante dos adversários - note-se que nunca se subestima a sua força, antes se exagera porque o pensamento único precisa de inimigos apenas se subestimam as suas capacidades intelectuais e o seu perfil moral - junta-se o culto dos líderes do pensameto único. Os baús da História estão cheios de fotografias retocadas, biografias amputadas ou pura e simplesmente inventadas. (A quem quiser contemplar este exercício numa versão praticamente extinta recomendo o site da Coreia do Norte http://www.korea-dpr.com ou o jornal cubano Granma na sua versão digital http://www.granma.cu ). Na versão mais corrente e próxima temos já não a criação de personalidades exemplares de Chefes, Queridos Líderes, Grandes Timoneiros, Generalíssimos... mas sim títulos como "John Kerry, aristocrate de gauche" ( jornal "Le Monde" de 26 de Julho) que revelam não só um profundo desconhecimento quer do programa quer da biografia de John Kerry como uma enorme e inquietante disponibilidade para sobrevalorizar um homem, no caso Kerry, em detrimento de outro, no caso Bush.
Independentemente do candidato que se tenha apoiado, as eleições norte-americanas acabaram por ilustrar a cegueira a que conduzem os consensos inquestionáveis e os unanimismos. Contudo no nosso dia a dia, eles estão aí, às vezes tão absurdamente evidentes que já não nos espantam nem indignam. Veja-se, por exemplo, a forma como, esta semana, foi relatado o assassínio do realizador Theo van Gogh: "O realizador holandês da curta-metragem Submissão, Theo van Gogh, foi ontem assassinado, em pleno dia numa rua de Amesterdão. O controverso cineasta acabara de realizar um filme sobre o assassínio do político populista e de ultradireita Pim Fortuyn, morto em Maio de 2002. O suspeito, de 26 anos, foi descrito como tendo barba comprida e estar vestido como um muçulmano." Ou seja, segundo esta notícia do jornal "A Capital", igual nos seus preconceitos a tantas outras que relataram esta morte, o assassino é o único que tem direito a um tratamento isento: apesar de estar vestido como muçulmano e de mais à frente se ter acrescentado que possuía nacionalidade marroquina ninguém o adjectiva de nada. Não é controverso, não é fundamentalista islâmico, não é racista, não é anti-ocidental.
Imaginemos que Theo van Gogh em vez de fazer um filme sobre a violência a que o Islão submete as mulheres ou sobre o "político populista e de ultradireita Pim Fortuyn" tinha optado por tratar a vida de Chico Mendes, o líder dos seringueiros brasileiros assassinado em 1988 e que o homem que o matara tinha nacionalidade brasileira. Então esta notícia seria mais ou menos assim: "O cineasta conhecido pelas suas corajosas posições de apoio à luta dos povos da Amazónia acabara de realizar um filme sobre o assassínio do carismático líder seringueiro Chico Mendes, barbaramente assassinado no final de 1988 por homens a soldo dos grandes fazendeiros do estado do Acre. A possível ligação do assassino de Theo van Gogh aos responsáveis pela morte de Chico Mendes parece ser inevitável." Como Theo Van Gogh não escolheu os temas certos é um assassinado "controverso".
Moral da História: no pensamento único nada se perde, tudo se transforma."
Por HELENA MATOS
Sábado, 06 de Novembro de 2004
"Na vitória de Bush existem dados que de modo algum podem ser ignorados e um deles é a derrota do unanimismo. Do pensamento único. Do politicamente correcto. Ou de como se quiser chamar a essa arrogância que tem levado milhões de almas a considerarem que apenas os estúpidos, os ignorantes, os intelectualmente intoxicados e, claro, os que representam obscurantissimos interesses discordam das suas teses. Aliás uma das características do pensamento único é essa estruturação em função do inimigo externo. É a esse inimigo que dedicam grande parte dos seus discursos, subestimando um programa político. Nazis, fascistas e comunistas, expoentes ideológicos do pensamento único, são disso um bom exemplo. Ironicamente é pela sua relação com os inimigos que acabaram a ser julgados na posteridade: os campos de extermínio, a tortura, as execuções sumárias - ou seja as formas a que recorreram para se desembaraçarem dos inferiores - sobrepõem-se àquilo que fizeram ou se propuseram fazer com aqueles que os apoiavam.
Nas democracias, os continuadores desta gente de convicções sólidas sobre o QI e o carácter dos outros, são os zelosos arautos do politicamente correcto. E estes arautos instituíram Bush como o inimigo. Logo ao mesmo tempo que o depreciavam intelectualmente, apresentavam-no como isolado do mundo da cultura. Listas de cantores, realizadores de cinema, jornalistas, escritores... foram-se declarando anti-Bush e essa tomada de posição era apresentada como um acto de resistência pese ser absolutamente consensual no mundo de que provinham essas pessoas. O aval dos intelectuais e dos artistas a determinados líderes e a sua rejeição a outros funciona não apenas em termos obvia e directamente mediáticos mas também de forma muito mais profunda apelando a que haja uma identificação entre o líder apoiado e a inteligência. O líder rejeitado, antes pelo contrário, é apresentado como anti-cultura, anti-inteligência. No mundo do pensamento único está instituído que Bush é estúpido pois Michael Moore - tão culto e que tem tido tantos prémios de cinema - provou que ele é estúpido. Faz tanto sentido acreditar na estupidez de Bush a partir dos filmes de Michael Moore quanto presumir que os alemães eram uma raça superior após visionar os documentários de Leni Riefenstahl, mas uma das características do pensamento único é precisamente o conseguir renovar constantemente os objectos dos seus ódios e paixões, sem nunca questionar a sua disponibilidade para acreditar naquilo que quer e precisa que seja provado.
Bush será provavelmente tão ignorante e estúpido quanto Jimmy Carter. Exactamente esse que foi presidente dos EUA e que os europeus transfomaram dum produtor de amendoins incapaz de perceber o mundo num misto da bondade da Madre Teresa de Calcutá e da inteligência de Albert Einstein, desde que declarou que o escrutínio na Flórida podia não ser fiável. Mas esse mesmo ex-presidente norte-americano, quando estava na Casa Branca chamou com carácter de urgência, o físico Fran Press. Porquê? Carter tinha lido num jornal "Do Sol chegam menos neutrões do que se esperava". O conselheiro científico confrontou-se com um alarmado Carter que lhe perguntou "O que podemos fazer, Press?" Será esta história de pacotilha verdadeira? Não faço ideia mas é do mais elementar bom senso não se avaliar por este episódio a cultura de Carter, sendo que me parece absolutamente normal que Carter tenha reagido como reagiu. Mas quantas pequenas histórias como esta temos ouvido com o propósito de corroborarem esse dogma inquestionável que é a estupidez de Bush?
A este subestimar constante dos adversários - note-se que nunca se subestima a sua força, antes se exagera porque o pensamento único precisa de inimigos apenas se subestimam as suas capacidades intelectuais e o seu perfil moral - junta-se o culto dos líderes do pensameto único. Os baús da História estão cheios de fotografias retocadas, biografias amputadas ou pura e simplesmente inventadas. (A quem quiser contemplar este exercício numa versão praticamente extinta recomendo o site da Coreia do Norte http://www.korea-dpr.com ou o jornal cubano Granma na sua versão digital http://www.granma.cu ). Na versão mais corrente e próxima temos já não a criação de personalidades exemplares de Chefes, Queridos Líderes, Grandes Timoneiros, Generalíssimos... mas sim títulos como "John Kerry, aristocrate de gauche" ( jornal "Le Monde" de 26 de Julho) que revelam não só um profundo desconhecimento quer do programa quer da biografia de John Kerry como uma enorme e inquietante disponibilidade para sobrevalorizar um homem, no caso Kerry, em detrimento de outro, no caso Bush.
Independentemente do candidato que se tenha apoiado, as eleições norte-americanas acabaram por ilustrar a cegueira a que conduzem os consensos inquestionáveis e os unanimismos. Contudo no nosso dia a dia, eles estão aí, às vezes tão absurdamente evidentes que já não nos espantam nem indignam. Veja-se, por exemplo, a forma como, esta semana, foi relatado o assassínio do realizador Theo van Gogh: "O realizador holandês da curta-metragem Submissão, Theo van Gogh, foi ontem assassinado, em pleno dia numa rua de Amesterdão. O controverso cineasta acabara de realizar um filme sobre o assassínio do político populista e de ultradireita Pim Fortuyn, morto em Maio de 2002. O suspeito, de 26 anos, foi descrito como tendo barba comprida e estar vestido como um muçulmano." Ou seja, segundo esta notícia do jornal "A Capital", igual nos seus preconceitos a tantas outras que relataram esta morte, o assassino é o único que tem direito a um tratamento isento: apesar de estar vestido como muçulmano e de mais à frente se ter acrescentado que possuía nacionalidade marroquina ninguém o adjectiva de nada. Não é controverso, não é fundamentalista islâmico, não é racista, não é anti-ocidental.
Imaginemos que Theo van Gogh em vez de fazer um filme sobre a violência a que o Islão submete as mulheres ou sobre o "político populista e de ultradireita Pim Fortuyn" tinha optado por tratar a vida de Chico Mendes, o líder dos seringueiros brasileiros assassinado em 1988 e que o homem que o matara tinha nacionalidade brasileira. Então esta notícia seria mais ou menos assim: "O cineasta conhecido pelas suas corajosas posições de apoio à luta dos povos da Amazónia acabara de realizar um filme sobre o assassínio do carismático líder seringueiro Chico Mendes, barbaramente assassinado no final de 1988 por homens a soldo dos grandes fazendeiros do estado do Acre. A possível ligação do assassino de Theo van Gogh aos responsáveis pela morte de Chico Mendes parece ser inevitável." Como Theo Van Gogh não escolheu os temas certos é um assassinado "controverso".
Moral da História: no pensamento único nada se perde, tudo se transforma."
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