O MacGuffin

sexta-feira, abril 09, 2004

LEITURAS
Sobre o problema dos refugiados do conflito israelo-árabe, surge agora, revista, a obra de Benny Morris The Birth Of The Palestinian Refugee Problem Revisited (Cambridge, 2004).
Até à data, foram vários os livros que se debruçaram sobre o conflito israelo-palestiniano, em geral, e sobre o problema dos refugiados, em particular. Mas o resultado dessas tentativas de percepção do problema raramente conseguiram descolar do posicionamento engajado, parcial, comprometido dos seus autores, com uma ou outra ‘causa’. Não quero com isto dizer que, na sua maioria, tenha havido má-fé, falta de rigor ou desonestidade intelectual por parte desses autores, até porque não conheço todos os livros. O que me é dado a perceber é que têm sido poucas as obras onde se tenha tentado fazer uma abordagem relativamente limpa de tendências ideológicas, politicas, e onde realmente se tenha tentado mostrar o necessário, embora difícil, distanciamento emocional. Não é, contudo, de estranhar. O conflito israelo-palestiniano é dos que, à distância, mais paixões e ódios tem desencadeado, os quais se vão juntando à amálgama de ódio, insanidade e profundo ressentimento que vai soterrando o dia-a-dia dos seus protagonistas. Eu próprio confesso aquilo que os leitores mais ou menos atentos deste blogue sabem: tenho sido, e muito dificilmente deixarei de ser, tendencialmente pró-Israel.

Dito isto, convém explicar uma coisa: o ser-se 'pró-qualquer-coisa' não invalida o reconhecimento de culpas de parte a parte. Não invalida que, aqui e acolá, não se reconheça que a contenda já evoluiu para um estágio em que falar de “bons” e “maus” não faz sentido. A minha posição de apoio à «causa» israelita (que não se baseia somente na memória do Holocausto) nunca me impediu de verificar que, ao longo dos anos, foram cometidos erros, excessos e crimes contra o outro lado da «barricada». E que nem sempre as coisas, para não dizer raramente, foram, e são, a preto e branco.

A obra de Benny Morris arruma-se, em minha opinião, na prateleira dos estudiosos que tentaram observar o conflito de forma fria, distanciada e imparcial. Sinal claro disso foi o facto de, aquando da sua primeira edição, ter sido apontado pela OLP como pura «propaganda sionista», ao mesmo tempo que, do lado dos israelitas, o autor era apontado como um «apoiante da OLP». A tese, para muitos ambígua, que Morris constrói ao longo das mais de seiscentas páginas dedicadas ao problema dos refugiados palestinianos, confirma aquilo que eu sempre pensei sobre o assunto: o problema dos refugiados não teve uma única causa, nem um único culpado.

Sobre a «culpa», lembro o que afirmava Edward Said em 2000, numa entrevista ao jornal Há’aretz: “A guerra de 1948 foi uma guerra de expropriação. O que aconteceu em 1948 não foi mais do que a destruição da sociedade palestiniana, a sua substituição por outra e a expulsão dos que eram indesejados. Ou seja, aqueles que estavam no caminho. É difícil para mim afirmar que a responsabilidades esteja toda apenas de um lado. Mas a grande fatia de responsabilidade pelo despovoamento e consequente destruição das cidades cabe em definitivo aos judeus-sionistas. Os palestinianos foram apenas culpados por estarem lá.” E lembro o que disse Noam Chomsky em 2002, numa palestra em Harvard: “Durante a guerra, entre 1947 e 1948 os israelitas iniciaram um trabalho de limpeza étnica. (…) Benny Morris demonstrou que a população árabe foi conduzida a sair pelos israelitas.” Como deverão calcular, o que é interessante na obra de Morris é o facto de ele ter recusado esta visão monolítica e comprometida do problema, com culpados de um lado, e vitimas do outro. Ao contrário do que o idiota do Chomsky afirma (e desculpem se ofendo alguém), Morris não demonstrou nada disso. O livro desmistifica, desde logo, a ideia de que os judeus, a partir de 1947, encetaram a expulsão sistemática e sumária dos palestinianos, criando automática e exclusivamente o problema dos refugiados. As coisas não se passaram assim, de forma tão simples.

Sabemos, em primeiro lugar, uma coisa: a abordagem agressiva e belicista dos árabes, face a Israel, ajudou à criação do problema dos refugiados via guerra. Quem quis a guerra foram os árabes, não Israel. Se há coisa que Morris demonstra (ele que é um historiador da velha guarda, que acredita mais no poder dos documentos do que no poder das palavras de quem, cinquenta e tal anos depois, aceita testemunhar) é esta: o êxodo palestiniano não se deveu a uma estratégia ou a um masterplan sionista. As causas variaram no espaço e no tempo, ligadas a uma multiplicidade de factores sociais, económicos e militares. Na maior parte dos casos, não houve coerção nem foram emanadas ordens directas nesse sentido, por parte dos responsáveis israelitas. Parte do êxodo é explicado pelo natural receio da guerra, que levou a população civil a afastar-se da linha de combate. E há que reconhecer, de uma vez por todas, que a falta de consistência e de coesão «nacionais» por parte dos lideres árabes (para já não falar no posterior e ainda hoje presente desprezo, deste lideres, em relação aos refugiados), aliada a uma total falta de entreajuda e de solidariedade para com as populações civis que decidiram deslocar-se para as zonas sob controlo árabe, pesaram muito no problema dos refugiados.

Por outro lado, o livro de Morris não poupa o comportamento israelita, com as insinuações e as supostas provas de que, nalguns casos, houve uma política pró-“transferência” (se necessária compulsiva) da população palestiniana e que, por arrastamento, foram cometidos excessos por parte dos militares e das suas cadeias de comando. Mas Morris é perfeito em acentuar o tal carácter «ambíguo» da sua obra, afirmando, também, que os árabes foram useiros e vezeiros em cometer brutalidades gratuitas, como as relatadas durante a conquista de Kfar Etzion por parte dos árabes, em que 120 judeus civis foram massacrados após se terem entregue pacificamente. Quanto à estratégia árabe, escreve Morris: “In some areas Arab commanders ordered the villagers [palestinians] to evacuate to clear the ground for military purposes or to prevent surrender. More than half a dozen villages were abandoned during these months as a result of such orders. Elsewhere, in East Jerusalem and in many villages around the country, the [Arab] commanders order women, old people, and children to be sent away to be out of harm’s way. Indeed, psychological preparation for the removal of dependents from the battlefield had begun in 1946-1947, when the AHC and the Arab League had periodically endorsed such a move when contemplating the future war in Palestine.”

Chamem-lhe «ambiguo» ou pró-qualquer-coisa. Na minha opinião, o livro de Morris é muito interessante e representa uma importante contribuição para a compreensão do problema dos refugiados.


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