O MacGuffin

terça-feira, março 16, 2004

A PAIXÃO DE MEL
Fui ontem ver A Paixão de Cristo, segundo Gibson.

Primeira observação: foram exageradas as acusações de anti-semitismo dirigidas a Mel, na medida em que qualquer adaptação minimamente fidedigna (e esta é-o sem margem para dúvidas) dos evangelhos acabaria por resultar num exercício tendencialmente anti-semita. Ou seja, a culpa, se é que há culpa, é do livro agora adaptado. São Marcos falava em “conspiração dos judeus” (Mc 14). São Lucas também (Lc 22). São Mateus idem. Até a referência, em jeito de ameaça, a César por parte dos sacerdotes, quando se dirigiam a Pilatos, relatada por São João, está presente. É óbvio que Mel Gibson não aligeirou a coisa e, como católico ortodoxo e fervoroso, tratou de fazer dos judeus (sumo sacerdotes, escribas e populaça em geral) os maus da fita. Se é um filme perigoso? Talvez. Vai haver muita alminha zangada com os judeus, as quais, já imbuídas pelo espírito dos tempos e pela proverbial ignorância em relação à História, farão a ponte com o Israel do Sec. XXI. Quanto aos romanos, o saldo acaba por ser positivo: observamos um Pilatos consciente da latente injustiça, embora incapaz de ceder ao seu papel de administrador de uma região e de um povo que não se queria revoltoso (uma angustia muito bem explorada no filme), bem como a presença de soldados sensíveis ao sofrimento de Jesus, apesar da demência de outros.

Segunda observação: o filme é contrário ao actual cânone sensitivo. Anestesiado pela banalização da violência via «caixinha que mudou o mundo», habituado a uma violência filtrada e pictórica via Nintendo e Sony, acostumado a desviar o olhar do horror, o ocidental médio sairá do cinema violentado pela forma como Gibson filmou a crueldade infligida a Jesus e pelo realismo de um corpo dilacerado vezes sem conta. Nesse sentido, a Paixão de Cristo é um filme hardcore, onde não há lugar para indirectas, evasivas ou filtros politicamente correctos.

Terceira e última observação: não é um filme excepcional e está longe de ser uma obra-prima. Ainda assim, é um filme que cumpre a sua função e foge elegantemente à tentação do «épico bíblico». A opção do aramaico foi uma aposta ganha. E há, pelo menos, três ou quatro cenas de antologia: a cena inicial no monte das Oliveiras, o flashback de Maria socorrendo o seu filho em pequeno e olhando agora o mesmo filho carregando a cruz, as três negações de Pedro e o diálogo entre Pilatos e Jesus – cenas contudo insuficientes para o empurrar para outros voos. De resto, a história e o argumento eram já bastante conhecidos.

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