ALBERTO GONÇALVES, QUEM HAVERIA DE SER?
Torres e Peões
por Alberto Gonçalves
"Domingo passado, Portugal reparou na figura do autarca alvar e ficou em estado de choque. O alvoroço foi tamanho que levou a pronunciamentos do primeiro-ministro e do dr. Sampaio. Das duas, uma: ou somos de uma hipocrisia extrema ou de uma ingenuidade medonha.
Se não tínhamos notado, o sr. Ferreira Torres, embora seja “um caso”, está longe de ser caso único. Quando se fala do “país real”, e Deus sabe as vezes que enchemos a boca com tão bela imagem, é também do sr. Ferreira Torres que falamos. Dele, e dos Mesquitas, dos Narcisos e dos Vieiras que constituem desde 1975 a dimensão nada discreta dos poderes regionais e paralelos.
Em campanha, Lisboa chama estes espécimes ao palco para berrarem slogans e arrebanharem votos; no tempo restante, são largados na impunidade, que aproveitam para reforçar o domínio na paróquia, fazer “obra” e, se vier a jeito, baptizar a “obra” com as respectivas, e imortais, graças. Se há queixas, as queixas calam-se: na terra deles, mandam eles, munidos da legitimidade eleitoral e da arte do compadrio. O municipalismo democrático? Ei-lo. A regionalização? Não brinquem.
Por razões evidentes, os comentadores do ramo não partilham esta visão das coisas, preferindo usar o sr. Ferreira Torres como mero exemplo da promiscuidade entre a política e o futebol. Por um lado, a ideia é divertida, dado que o exemplo contrário – Rui Rio, quem haveria de ser? – tem ouvido o que Maomé não disse do vinho. Por outro lado, a ideia é divertida à mesma, visto pressupor que o estilo dos nossos autarcas-modelo deve-se à bola: tirem-lhes a dita e é vê-los espalhando polidez. Infelizmente, e à semelhança da construção civil, o futebol é apenas um meio propício à troca de influências, aquisição de “prestígio” e obtenção de benefícios. Se não existisse, o pólo aquático ou a apicultura teriam idêntico efeito.
As luminárias tipo Ferreira Torres foram, à esquerda e à direita, um produto do PREC, heróis do combate ao comunismo ou campeões do operariado. Tirando a gritaria nos saudosos plenários, porém, pouco acrescentavam, a não ser a manha necessária à perpetuação no poder, que esta democracia trôpega facilita. O regime já vai com três décadas e muito do entulho autárquico primordial resiste por aí, abrigado na pacatez das coutadas. Podemos queixar-nos das “redes” locais, dos mandatos infinitos e da cobardia dos políticos “sérios” – que elevam, por cálculo, o entulho às direcções nacionais.
A verdade é que, em última instância, os inúmeros Ferreira Torres são eleitos por sufrágio universal e livre. O espanto que eles suscitam é o espanto com que os portugueses periodicamente se descobrem. As descobertas são de facto a nossa vocação."
in Correio da Manhã
Torres e Peões
por Alberto Gonçalves
"Domingo passado, Portugal reparou na figura do autarca alvar e ficou em estado de choque. O alvoroço foi tamanho que levou a pronunciamentos do primeiro-ministro e do dr. Sampaio. Das duas, uma: ou somos de uma hipocrisia extrema ou de uma ingenuidade medonha.
Se não tínhamos notado, o sr. Ferreira Torres, embora seja “um caso”, está longe de ser caso único. Quando se fala do “país real”, e Deus sabe as vezes que enchemos a boca com tão bela imagem, é também do sr. Ferreira Torres que falamos. Dele, e dos Mesquitas, dos Narcisos e dos Vieiras que constituem desde 1975 a dimensão nada discreta dos poderes regionais e paralelos.
Em campanha, Lisboa chama estes espécimes ao palco para berrarem slogans e arrebanharem votos; no tempo restante, são largados na impunidade, que aproveitam para reforçar o domínio na paróquia, fazer “obra” e, se vier a jeito, baptizar a “obra” com as respectivas, e imortais, graças. Se há queixas, as queixas calam-se: na terra deles, mandam eles, munidos da legitimidade eleitoral e da arte do compadrio. O municipalismo democrático? Ei-lo. A regionalização? Não brinquem.
Por razões evidentes, os comentadores do ramo não partilham esta visão das coisas, preferindo usar o sr. Ferreira Torres como mero exemplo da promiscuidade entre a política e o futebol. Por um lado, a ideia é divertida, dado que o exemplo contrário – Rui Rio, quem haveria de ser? – tem ouvido o que Maomé não disse do vinho. Por outro lado, a ideia é divertida à mesma, visto pressupor que o estilo dos nossos autarcas-modelo deve-se à bola: tirem-lhes a dita e é vê-los espalhando polidez. Infelizmente, e à semelhança da construção civil, o futebol é apenas um meio propício à troca de influências, aquisição de “prestígio” e obtenção de benefícios. Se não existisse, o pólo aquático ou a apicultura teriam idêntico efeito.
As luminárias tipo Ferreira Torres foram, à esquerda e à direita, um produto do PREC, heróis do combate ao comunismo ou campeões do operariado. Tirando a gritaria nos saudosos plenários, porém, pouco acrescentavam, a não ser a manha necessária à perpetuação no poder, que esta democracia trôpega facilita. O regime já vai com três décadas e muito do entulho autárquico primordial resiste por aí, abrigado na pacatez das coutadas. Podemos queixar-nos das “redes” locais, dos mandatos infinitos e da cobardia dos políticos “sérios” – que elevam, por cálculo, o entulho às direcções nacionais.
A verdade é que, em última instância, os inúmeros Ferreira Torres são eleitos por sufrágio universal e livre. O espanto que eles suscitam é o espanto com que os portugueses periodicamente se descobrem. As descobertas são de facto a nossa vocação."
in Correio da Manhã
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial