POST DEFINITIVO, LONGO (MUITO LONGO), CONFUSO, MAS ABSOLUTAMENTE SINCERO, SOBRE AS ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA E O IRAQUE
Tempos houve em que uma guerra – ou, eufemisticamente, um “conflito armado” – começava por causa de um mero lapsus linguae, uma indisposição gástrica ou um desarranjo passional. Com o passar dos séculos, e até ao advento dos Estados Modernos, o mundo assistiu a guerras santas, territoriais e dinásticas, nas quais estiveram presentes, acima de tudo, razões de ordem económica, de sucessão ou, no que toca a factores intangíveis, razões de ordem religiosa. Foi assim até meados do Sec. XVII, altura que alguns historiadores apontam como o ponto de viragem nas relações internacionais, com a instituição do que veio a denominar-se de “Paz Westfálica”, ou seja, o princípio de uma espécie de direito internacional, neste caso originariamente regional, onde países beligerantes acordavam um suposto pacto de não-ingerência. A mesma leitura foi feita já no Sec. XIX, com a denominada “Segunda paz de Westfália” e, mais tarde, no período seguinte ao da Primeira Guerra Mundial, com os projectos de constitucionalismo global: a SDN e, posteriormente, a ONU. É possível caracterizar, a partir destes três ciclos de «ordem» e «paz», o nascimento de uma nova ideia de ingerência em estados alheios por parte de coligações e grupo de estados, com base em motivações humanitárias ou de “interesse geral”, levada a cabo contra ditadores e estados párias - em sintonia, aliás, com os crescentes clamores das opiniões públicas em torno da ideia de «moralização» por imposição. A intervenção no Kosovo foi um exemplo inequívoco desta forma de ingerência em seara alheia, na qual o móbil da acção militar foi quase exclusivamente de ordem moral. Mas a História ensina-nos que, à margem de pactos, ordens e pazes, nunca fez muito sentido falar em razões puramente altruístas, nem sequer em motivações isoladas. Regra geral, o denominado “interesse geral” não é separável de interesses particulares. As coisas são o que são. Se por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, em matéria de relações internacionais, por detrás de uma razão forte existiram e existirão sempre outras. É assim desde que o homem é homem. Mesmo nos períodos em que vigorava a denominada “Paz de Westfália”, nunca deixaram de existir estratégias indirectas, prerrogativas de interferência, intervenções selectivas de baixa intensidade. Os «interesses» (económicos, territoriais, puramente políticos) farão sempre parte do jogo.
Em pouco mais de uma década, foram desencadeadas duas intervenções militares no Iraque com base em coligações de nações. Uma ao abrigo do Direito Internacional, outra supostamente alheia a esse mesmo direito. Ambos os conflitos foram assistidos por razões e motivações diversas. O petróleo, por exemplo? Claro que sim. Nesse sentido, o Iraque é um país «especial»: tem petróleo a pontapés e está situado numa zona do globo estrategicamente fundamental. Isso tem, obviamente, um peso. Mas, repito: as coisas são o que são. É intrínseco à natureza humana agir em nome do bem; mas é igualmente intrínseco agir selectivamente em função de interesses praticando, ou não, o bem. Directa ou indirectamente. Consciente ou inconscientemente. Idealmente ou não. Dito de outro forma, nem sempre é possível separar questões de princípio e de ordem moral, de questões de valor «inferior», dado o intricado sistema de relações existentes entre estados, governos, grupos económicos e instituições internacionais. E isso não tem de ser necessariamente uma fatalidade. A existência de «interesses» e motivações «colaterais» egoístas são naturais e não têm de significar uma derrota moral para o ser humano. Seria importante perceber que vivemos hoje, como vivíamos ontem, num mundo possível, recheado de equilíbrios precários, motivações antagónicas, interesses múltiplos e (inter)dependências diversas. No plano dos conflitos e problemas mundiais mais prementes, há quem exija coerência, altruísmo e total assepsia relativamente a motivações mais «sujas» ou, pelo menos, mais terrenas e comezinhas. Há quem defenda que todo o sofrimento e todo o mal do mundo deve ser combatido a toda a linha e ao mesmo tempo (o famoso argumento de “existirem outros ditadores para além de Saddam”), sob pena de sermos selectivamente hipócritas ou «interesseiros». Outros há que, não discordando da declaração de princípios daqueles, aceitam como válidas outras razões e outros interesses a juntar à ideia de justiça desde que, no fim, se faça essa mesma justiça. Ou seja, desde que o mundo, em geral, avance e fique um nadinha mais aliviado. No fundo, aceitam essa história dos interesses paralelos como uma coisa natural, retirando-lhes a carga negativista. Porque sabem, também, que para levar a cabo acções desse tipo não existem meios materiais e humanos acima das nações. A maioria das nações depende de outras. Daí o trabalho complexo e nem sempre profícuo de concertação e de negociação em sede de organismos internacionais. É um pouco aquela ideia de alguém ter de fazer um determinado trabalho; se o fizer de borla, tanto melhor; se o fizer exigindo um preço ou lucrando com isso, ainda assim poderá valer a pena.
A recente intervenção no Iraque foi rica em comportamentos, no mínimo, curiosos. Assistimos à desvalorização, a toda a linha, das questões de ordem moral contra o argumento de que a intervenção era pobre nessas mesmas razões. O factor NIMB foi deslocado do seu contexto para dar lugar à doutrina INIMB: “If Not In My Backyard…” Os que, no passado, exigiam a interferência salvífica da ONU ou a intervenção desinteressada dos EUA (à falta de um exercito mundial) em cenários onde as botas pesadas dos mais sanguinolentos ditadores espezinhavam os mais elementares direitos humanos (em regimes onde vigorava o mais puro terror físico e psicológico) - quer houvesse, ou não, uma ameaça real sobre o mundo ou sobre os seus quintais – viraram o bico ao prego. A estratégia mudou: os críticos do «sistema» e a putativa opinião pública mundial (que eu não sei o que é, nem se existe), passaram a reclamar investigações criminais de contornos detectivescos, provas irrefutáveis, demonstrações in loco que pudessem confirmar, without a reasonable doubt, que o regime X, o líder Y ou o Estado Z representavam uma ameaça à escala mundial. Coincidência, ou não, esta viragem fez-se de forma proporcional relativamente ao crescente protagonismo do país que, ideológica, económica e politicamente mais influenciou e alterou – por razões más, boas ou assim-assim – a face do mundo: os EUA. Coincidência, ou não, esta nova forma de racionalizar os problemas passou a ser notada sempre que passaram a estar envolvidas vontades e interesses norte-americanos. Os utópicos, os idealistas e os altruístas de outrora são, hoje em dia, os principais cínicos e calculistas. Passaram-se a pesar os prós e os contras, a avaliar consequências e timings, a deitar mão de uma metodologia cost-benefit. Não foi Louçã que, respondendo à pergunta “O regime de Saddam não é um regime brutal?”, afirmou, na SIC-Notícias, que “ainda assim, o Iraque não é uma ameaça para os seus vizinhos nem para o mundo”, ou seja, que não havia razões «externas» que justificassem a possibilidade, ainda que paralela, de aliviar o fardo do povo iraquiano? Não foram os anti-americanistas em geral, e certos esquerdistas em particular, que passaram a desvalorizar as milhares e milhares de execuções sumárias no Iraque, a continuada e silenciosa marginalização criminosa dos curdos, a utilização de armas químicas e biológicas no passado, a ignóbil gincana feita por Saddam ao programa Food for Oil (com especial prejuízo para a população não engajada), os efeitos nefastos de um ambargo, porque o que estava em causa era evitar que a mãozinha sórdida e interesseira do Sr. Bush e da nação imperial (a tal que apoia Israel, é contrária a Quioto e venera o capitalismo) pudesse agir e, com isso, retirar benefícios «interesseiros» e «egoístas» (mesmo que isso significasse a perpetuação de um doentio status quo e o adiamento de uma intervenção que, mais tarde ou mais cedo, teria de ser feita)? “Ah!”, dirão uns, “mas foram eles que armaram Saddam!“. De acordo. Eles e meio mundo (franceses, alemães e russos). Mais uma razão para se tentar emendar a mão. Desfazer os erros do passado. Haveria outra nação ou coligação com capacidade para o fazer? “Ah!”, dirão outros, “mas não há no mundo outros ditadores? Não existem por aí outras populações em sofrimento?” E eu digo: haverá argumento mais favorável à promoção do imobilismo perante a inexequibilidade de se intervir ao mesmo tempo em todos os cenários de terror? Duvido. “Mas eles foram lá por causa do pitrólio!”, insistem. Também, respondo eu. Mas terá sido essa a principal motivação? Não creio. Dou a palavra ao mafarrico Wolfowitz: “A verdade é que por razões que têm muito a ver com a burocracia dos Estados Unidos acordámos numa questão em que toda a gente pudesse concordar, que foi a das armas de destruição em massa como razão central, mas houve sempre três preocupações fundamentais. Uma eram as armas de destruição massiva, outra o apoio do terrorismo, a terceira o tratamento criminoso do povo iraquiano.”
Eu nunca ignorei a questão das ADM, mas nunca a entendi como o grande e único casus belli. Os EUA e a Inglaterra estiveram mal na forma como abusaram dessa justificação. Mas contínuo a achar que há algo de profundamente errado nesta obsessão em torno da existência das ADM perante o cenário desolador de centenas de valas comuns onde se esconderam milhares de corpos; por entre as imagens esclarecedoras do despotismo, demência e brutalidade de Saddam e seus filhos; e, claro está, perante o aftermath do 11 de Setembro. Porque a chave que despoleta todas as motivações está aí. É bom não esquecer este facto, que a alguns pode dizer pouco e que muitos já esqueceram: os EUA foram alvo de um ataque soez, sem precedentes, no dia 11 de Setembro de 2001. Um ataque onde morreram, em poucos minutos, cerca de 3.000 inocentes. Para o bem e para o mal, o 11 de Setembro marcou indelevelmente a forma de olhar o mundo por parte dos responsáveis norte-americanos, tendo precipitado algumas decisões. Existe, na região do médio oriente, uma forte instabilidade política e social, servida pelo fanatismo religioso e por uma propaganda anti-ocidente (cuja explicação pode e deve ser encontrada no retrocesso civilizacional e na estagnação de mentalidades que por lá se enraizaram, fruto da inacção, incompetência e estupidez de muitos dos seus lideres). No Iraque, Saddam Hussein foi um dos mais brutais ditadores do Sec. XX, responsável por três conflitos armados, pela aniquilação de milhares de iraquianos e pelo atraso económico do seu país a um nível vergonhoso, num território riquíssimo em reservas petrolíferas. Os EUA consideraram que a indiferença seria, num futuro próximo, bem mais perigosa do que a acção. Os responsáveis americanos e ingleses olharam para Saddam e julgaram ser bastante provável, dada a conjuntura internacional e a história recente do regime iraquiano, que Saddam voltasse a pôr em prática os seus propósitos megalómanos e, da mesma forma que já apoiava o terrorismo dos grupos radicais palestinianos, passasse a apoiar grupos terroristas «globais» (como é o caso da Al Qaeda), com armas de destruição em massa. Aos políticos (não os detectives, os operacionais ou os agentes infiltrados) chegou um dossier onde se encontrava um pouco de tudo: factos irrefutáveis, suspeitas mais ou menos fundamentadas e evidências preocupantes: o tratamento criminoso do povo iraquiano, o facto de o regime iraquiano ter falhado em provar que tinha destruído o seu arsenal de armas biológicas e químicas (já agora, o Sr. Blix é um canalhinha: se afirma, agora, pomposa e altivamente, que não existiam ADM no Iraque, porque razão não o escreveu peremptoriamente nos seus relatórios?), o jogo de hide-and-seek com os inspectores da ONU e a respectiva violação das resoluções do Conselho de Segurança, as suspeitas relativas ao tráfico de urânio, as ligações a grupos terroristas palestinianos, os campos de treino da al-Qaeda em solo iraquiano, etc. Como políticos, e não como especialistas em balística ou física nuclear, optaram por agir. Foi, a todos os níveis, uma decisão política. Não no sentido da cruzada utópica, não no sentido dos interesses exclusivamente económicos (embora também), mas com objectivos de natureza geo-política incluídos numa estratégia global de combate ao terrorismo, a que se aliou uma bandeira de ordem moral (que era insofismavelmente real): a ideia de libertar um povo do jugo de um sanguinário e de instituir no medio-oriente um Estado que promovesse a ideia de liberdade e democracia (aliada a um Estado de Direito) e que garantisse o bem estar material e espiritual do seu povo.
Parece-me razoável e até essencial discutir a forma como foi feita a intervenção. É importante assacar responsabilidades pela forma como foram cometidos erros de palmatória, com se menosprezaram factores de segurança básicos e como falhou o trabalho de comunicação e diálogo junto da população civil. Contudo, enquanto não for provada a total iniquidade, impertinência e falência da intervenção militar que derrubou Saddam (prova essa só disponível daqui a um, dois ou três anos), continuarei a achar que valeu a pena. Porque continuarei a achar que o povo iraquiano está hoje melhor do que estava há um ano atrás. E não me refiro aos habitantes de Bagdad ou aos simpatizantes de Saddam. Refiro-me à esmagadora maioria da população. Até lá, ou seja, até prova em contrário, a questão das ADM será sempre uma questão que tenderei a desvalorizar. Não a suprimir, porque entendo que nessa questão há lições políticas a retirar. Mas, até lá, recusar-me-ei a entrar no jogo da objectividade asséptica e a encarnar o papel de Cassandra. Quando as coisas não correm na perfeição – embora estando no bom caminho – é fácil recorrer ao “I told you so”. Espero, sinceramente, que a intervenção não tenha sido em vão e que os seus mais nobres propósitos sejam cumpridos. É para isso que estão lá os soldados americanos, britânicos, polacos, japoneses, australianos, portugueses, etc. E lembrar-me-ei sempre do que escreveu Ramos Horta, quando justificou o seu apoio à guerra:
Abandonar esta ameaça seria, agora, perigoso e arriscado. Sim: o movimento anti-guerra poderia clamar por vitória por ter evitado uma guerra. Mas teria também de reconhecer e aceitar que teria ajudado a manter no poder um ditador impiedoso e teria de o explicar às suas milhares de vitimas. A história já demonstrou por diversas vezes que o uso da força é por vezes o preço a pagar pela libertação. Um intelectual Kosovar respeitável disse-me, uma vez, como se tinha sentido quando o mundo finalmente tinha decidido intervir no seu país: “Eu sou um pacifista. Toda a vida o fui. Mas tive uma grande alegria e senti-me livre quando vi as bombas da NATO caírem.”
Tempos houve em que uma guerra – ou, eufemisticamente, um “conflito armado” – começava por causa de um mero lapsus linguae, uma indisposição gástrica ou um desarranjo passional. Com o passar dos séculos, e até ao advento dos Estados Modernos, o mundo assistiu a guerras santas, territoriais e dinásticas, nas quais estiveram presentes, acima de tudo, razões de ordem económica, de sucessão ou, no que toca a factores intangíveis, razões de ordem religiosa. Foi assim até meados do Sec. XVII, altura que alguns historiadores apontam como o ponto de viragem nas relações internacionais, com a instituição do que veio a denominar-se de “Paz Westfálica”, ou seja, o princípio de uma espécie de direito internacional, neste caso originariamente regional, onde países beligerantes acordavam um suposto pacto de não-ingerência. A mesma leitura foi feita já no Sec. XIX, com a denominada “Segunda paz de Westfália” e, mais tarde, no período seguinte ao da Primeira Guerra Mundial, com os projectos de constitucionalismo global: a SDN e, posteriormente, a ONU. É possível caracterizar, a partir destes três ciclos de «ordem» e «paz», o nascimento de uma nova ideia de ingerência em estados alheios por parte de coligações e grupo de estados, com base em motivações humanitárias ou de “interesse geral”, levada a cabo contra ditadores e estados párias - em sintonia, aliás, com os crescentes clamores das opiniões públicas em torno da ideia de «moralização» por imposição. A intervenção no Kosovo foi um exemplo inequívoco desta forma de ingerência em seara alheia, na qual o móbil da acção militar foi quase exclusivamente de ordem moral. Mas a História ensina-nos que, à margem de pactos, ordens e pazes, nunca fez muito sentido falar em razões puramente altruístas, nem sequer em motivações isoladas. Regra geral, o denominado “interesse geral” não é separável de interesses particulares. As coisas são o que são. Se por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, em matéria de relações internacionais, por detrás de uma razão forte existiram e existirão sempre outras. É assim desde que o homem é homem. Mesmo nos períodos em que vigorava a denominada “Paz de Westfália”, nunca deixaram de existir estratégias indirectas, prerrogativas de interferência, intervenções selectivas de baixa intensidade. Os «interesses» (económicos, territoriais, puramente políticos) farão sempre parte do jogo.
Em pouco mais de uma década, foram desencadeadas duas intervenções militares no Iraque com base em coligações de nações. Uma ao abrigo do Direito Internacional, outra supostamente alheia a esse mesmo direito. Ambos os conflitos foram assistidos por razões e motivações diversas. O petróleo, por exemplo? Claro que sim. Nesse sentido, o Iraque é um país «especial»: tem petróleo a pontapés e está situado numa zona do globo estrategicamente fundamental. Isso tem, obviamente, um peso. Mas, repito: as coisas são o que são. É intrínseco à natureza humana agir em nome do bem; mas é igualmente intrínseco agir selectivamente em função de interesses praticando, ou não, o bem. Directa ou indirectamente. Consciente ou inconscientemente. Idealmente ou não. Dito de outro forma, nem sempre é possível separar questões de princípio e de ordem moral, de questões de valor «inferior», dado o intricado sistema de relações existentes entre estados, governos, grupos económicos e instituições internacionais. E isso não tem de ser necessariamente uma fatalidade. A existência de «interesses» e motivações «colaterais» egoístas são naturais e não têm de significar uma derrota moral para o ser humano. Seria importante perceber que vivemos hoje, como vivíamos ontem, num mundo possível, recheado de equilíbrios precários, motivações antagónicas, interesses múltiplos e (inter)dependências diversas. No plano dos conflitos e problemas mundiais mais prementes, há quem exija coerência, altruísmo e total assepsia relativamente a motivações mais «sujas» ou, pelo menos, mais terrenas e comezinhas. Há quem defenda que todo o sofrimento e todo o mal do mundo deve ser combatido a toda a linha e ao mesmo tempo (o famoso argumento de “existirem outros ditadores para além de Saddam”), sob pena de sermos selectivamente hipócritas ou «interesseiros». Outros há que, não discordando da declaração de princípios daqueles, aceitam como válidas outras razões e outros interesses a juntar à ideia de justiça desde que, no fim, se faça essa mesma justiça. Ou seja, desde que o mundo, em geral, avance e fique um nadinha mais aliviado. No fundo, aceitam essa história dos interesses paralelos como uma coisa natural, retirando-lhes a carga negativista. Porque sabem, também, que para levar a cabo acções desse tipo não existem meios materiais e humanos acima das nações. A maioria das nações depende de outras. Daí o trabalho complexo e nem sempre profícuo de concertação e de negociação em sede de organismos internacionais. É um pouco aquela ideia de alguém ter de fazer um determinado trabalho; se o fizer de borla, tanto melhor; se o fizer exigindo um preço ou lucrando com isso, ainda assim poderá valer a pena.
A recente intervenção no Iraque foi rica em comportamentos, no mínimo, curiosos. Assistimos à desvalorização, a toda a linha, das questões de ordem moral contra o argumento de que a intervenção era pobre nessas mesmas razões. O factor NIMB foi deslocado do seu contexto para dar lugar à doutrina INIMB: “If Not In My Backyard…” Os que, no passado, exigiam a interferência salvífica da ONU ou a intervenção desinteressada dos EUA (à falta de um exercito mundial) em cenários onde as botas pesadas dos mais sanguinolentos ditadores espezinhavam os mais elementares direitos humanos (em regimes onde vigorava o mais puro terror físico e psicológico) - quer houvesse, ou não, uma ameaça real sobre o mundo ou sobre os seus quintais – viraram o bico ao prego. A estratégia mudou: os críticos do «sistema» e a putativa opinião pública mundial (que eu não sei o que é, nem se existe), passaram a reclamar investigações criminais de contornos detectivescos, provas irrefutáveis, demonstrações in loco que pudessem confirmar, without a reasonable doubt, que o regime X, o líder Y ou o Estado Z representavam uma ameaça à escala mundial. Coincidência, ou não, esta viragem fez-se de forma proporcional relativamente ao crescente protagonismo do país que, ideológica, económica e politicamente mais influenciou e alterou – por razões más, boas ou assim-assim – a face do mundo: os EUA. Coincidência, ou não, esta nova forma de racionalizar os problemas passou a ser notada sempre que passaram a estar envolvidas vontades e interesses norte-americanos. Os utópicos, os idealistas e os altruístas de outrora são, hoje em dia, os principais cínicos e calculistas. Passaram-se a pesar os prós e os contras, a avaliar consequências e timings, a deitar mão de uma metodologia cost-benefit. Não foi Louçã que, respondendo à pergunta “O regime de Saddam não é um regime brutal?”, afirmou, na SIC-Notícias, que “ainda assim, o Iraque não é uma ameaça para os seus vizinhos nem para o mundo”, ou seja, que não havia razões «externas» que justificassem a possibilidade, ainda que paralela, de aliviar o fardo do povo iraquiano? Não foram os anti-americanistas em geral, e certos esquerdistas em particular, que passaram a desvalorizar as milhares e milhares de execuções sumárias no Iraque, a continuada e silenciosa marginalização criminosa dos curdos, a utilização de armas químicas e biológicas no passado, a ignóbil gincana feita por Saddam ao programa Food for Oil (com especial prejuízo para a população não engajada), os efeitos nefastos de um ambargo, porque o que estava em causa era evitar que a mãozinha sórdida e interesseira do Sr. Bush e da nação imperial (a tal que apoia Israel, é contrária a Quioto e venera o capitalismo) pudesse agir e, com isso, retirar benefícios «interesseiros» e «egoístas» (mesmo que isso significasse a perpetuação de um doentio status quo e o adiamento de uma intervenção que, mais tarde ou mais cedo, teria de ser feita)? “Ah!”, dirão uns, “mas foram eles que armaram Saddam!“. De acordo. Eles e meio mundo (franceses, alemães e russos). Mais uma razão para se tentar emendar a mão. Desfazer os erros do passado. Haveria outra nação ou coligação com capacidade para o fazer? “Ah!”, dirão outros, “mas não há no mundo outros ditadores? Não existem por aí outras populações em sofrimento?” E eu digo: haverá argumento mais favorável à promoção do imobilismo perante a inexequibilidade de se intervir ao mesmo tempo em todos os cenários de terror? Duvido. “Mas eles foram lá por causa do pitrólio!”, insistem. Também, respondo eu. Mas terá sido essa a principal motivação? Não creio. Dou a palavra ao mafarrico Wolfowitz: “A verdade é que por razões que têm muito a ver com a burocracia dos Estados Unidos acordámos numa questão em que toda a gente pudesse concordar, que foi a das armas de destruição em massa como razão central, mas houve sempre três preocupações fundamentais. Uma eram as armas de destruição massiva, outra o apoio do terrorismo, a terceira o tratamento criminoso do povo iraquiano.”
Eu nunca ignorei a questão das ADM, mas nunca a entendi como o grande e único casus belli. Os EUA e a Inglaterra estiveram mal na forma como abusaram dessa justificação. Mas contínuo a achar que há algo de profundamente errado nesta obsessão em torno da existência das ADM perante o cenário desolador de centenas de valas comuns onde se esconderam milhares de corpos; por entre as imagens esclarecedoras do despotismo, demência e brutalidade de Saddam e seus filhos; e, claro está, perante o aftermath do 11 de Setembro. Porque a chave que despoleta todas as motivações está aí. É bom não esquecer este facto, que a alguns pode dizer pouco e que muitos já esqueceram: os EUA foram alvo de um ataque soez, sem precedentes, no dia 11 de Setembro de 2001. Um ataque onde morreram, em poucos minutos, cerca de 3.000 inocentes. Para o bem e para o mal, o 11 de Setembro marcou indelevelmente a forma de olhar o mundo por parte dos responsáveis norte-americanos, tendo precipitado algumas decisões. Existe, na região do médio oriente, uma forte instabilidade política e social, servida pelo fanatismo religioso e por uma propaganda anti-ocidente (cuja explicação pode e deve ser encontrada no retrocesso civilizacional e na estagnação de mentalidades que por lá se enraizaram, fruto da inacção, incompetência e estupidez de muitos dos seus lideres). No Iraque, Saddam Hussein foi um dos mais brutais ditadores do Sec. XX, responsável por três conflitos armados, pela aniquilação de milhares de iraquianos e pelo atraso económico do seu país a um nível vergonhoso, num território riquíssimo em reservas petrolíferas. Os EUA consideraram que a indiferença seria, num futuro próximo, bem mais perigosa do que a acção. Os responsáveis americanos e ingleses olharam para Saddam e julgaram ser bastante provável, dada a conjuntura internacional e a história recente do regime iraquiano, que Saddam voltasse a pôr em prática os seus propósitos megalómanos e, da mesma forma que já apoiava o terrorismo dos grupos radicais palestinianos, passasse a apoiar grupos terroristas «globais» (como é o caso da Al Qaeda), com armas de destruição em massa. Aos políticos (não os detectives, os operacionais ou os agentes infiltrados) chegou um dossier onde se encontrava um pouco de tudo: factos irrefutáveis, suspeitas mais ou menos fundamentadas e evidências preocupantes: o tratamento criminoso do povo iraquiano, o facto de o regime iraquiano ter falhado em provar que tinha destruído o seu arsenal de armas biológicas e químicas (já agora, o Sr. Blix é um canalhinha: se afirma, agora, pomposa e altivamente, que não existiam ADM no Iraque, porque razão não o escreveu peremptoriamente nos seus relatórios?), o jogo de hide-and-seek com os inspectores da ONU e a respectiva violação das resoluções do Conselho de Segurança, as suspeitas relativas ao tráfico de urânio, as ligações a grupos terroristas palestinianos, os campos de treino da al-Qaeda em solo iraquiano, etc. Como políticos, e não como especialistas em balística ou física nuclear, optaram por agir. Foi, a todos os níveis, uma decisão política. Não no sentido da cruzada utópica, não no sentido dos interesses exclusivamente económicos (embora também), mas com objectivos de natureza geo-política incluídos numa estratégia global de combate ao terrorismo, a que se aliou uma bandeira de ordem moral (que era insofismavelmente real): a ideia de libertar um povo do jugo de um sanguinário e de instituir no medio-oriente um Estado que promovesse a ideia de liberdade e democracia (aliada a um Estado de Direito) e que garantisse o bem estar material e espiritual do seu povo.
Parece-me razoável e até essencial discutir a forma como foi feita a intervenção. É importante assacar responsabilidades pela forma como foram cometidos erros de palmatória, com se menosprezaram factores de segurança básicos e como falhou o trabalho de comunicação e diálogo junto da população civil. Contudo, enquanto não for provada a total iniquidade, impertinência e falência da intervenção militar que derrubou Saddam (prova essa só disponível daqui a um, dois ou três anos), continuarei a achar que valeu a pena. Porque continuarei a achar que o povo iraquiano está hoje melhor do que estava há um ano atrás. E não me refiro aos habitantes de Bagdad ou aos simpatizantes de Saddam. Refiro-me à esmagadora maioria da população. Até lá, ou seja, até prova em contrário, a questão das ADM será sempre uma questão que tenderei a desvalorizar. Não a suprimir, porque entendo que nessa questão há lições políticas a retirar. Mas, até lá, recusar-me-ei a entrar no jogo da objectividade asséptica e a encarnar o papel de Cassandra. Quando as coisas não correm na perfeição – embora estando no bom caminho – é fácil recorrer ao “I told you so”. Espero, sinceramente, que a intervenção não tenha sido em vão e que os seus mais nobres propósitos sejam cumpridos. É para isso que estão lá os soldados americanos, britânicos, polacos, japoneses, australianos, portugueses, etc. E lembrar-me-ei sempre do que escreveu Ramos Horta, quando justificou o seu apoio à guerra:
Abandonar esta ameaça seria, agora, perigoso e arriscado. Sim: o movimento anti-guerra poderia clamar por vitória por ter evitado uma guerra. Mas teria também de reconhecer e aceitar que teria ajudado a manter no poder um ditador impiedoso e teria de o explicar às suas milhares de vitimas. A história já demonstrou por diversas vezes que o uso da força é por vezes o preço a pagar pela libertação. Um intelectual Kosovar respeitável disse-me, uma vez, como se tinha sentido quando o mundo finalmente tinha decidido intervir no seu país: “Eu sou um pacifista. Toda a vida o fui. Mas tive uma grande alegria e senti-me livre quando vi as bombas da NATO caírem.”
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