Da hagiografia
Vasco Pulido Valente, Público 15/11/2013
O último rei de Portugal
"Nas cortes do Absolutismo, o poder, a influência de cada um era medida pela proximidade do rei. A gente de importância ficava perto, a gente sem importância ficava longe. Em princípio ninguém falava sponte sua à pessoa sagrada que representava a ordem política e a ordem social; esperava que lhe falassem e geralmente respondia com as fórmulas tradicionais que a etiqueta estabelecia.
A tentativa de Maria Antonieta para ser tornar “humana” e “popular” (indo ao teatro, por exemplo) prejudicou mortalmente a Monarquia e criou contra ela um ódio universal. Esta digressão vem a propósito da homenagem que a televisão e os jornais resolveram prestar a Álvaro Cunhal, no centenário do seu nascimento. Quase toda a gente, que se resolveu a partilhar as suas memórias do homem, o tratou como um soberano.
De Manuel Alegre a Herman José, não apareceu uma única solitária criatura que se atrevesse, a esta distância, a pensar nele como um homem. Verdade que o homem Cunhal se escondia por detrás da sua figura messiânica; antes de morrer sempre impediu que Portugal soubesse com quem vivia (ou vivera), o nome dos filhos (se existiam), que amigos tinha, como se divertia ou qualquer outra coisa susceptível de perturbar a imagem do “comunista de cristal”, que ele encarnava ou, pelo menos, pretendia encarnar. Não é coincidência que as personagens que por aí o incensaram ignorem quase totalmente a política e se lembrem muito bem de episódios triviais, em que o soberano magnanimamente desce à inferioridade dos serventes e cortesãos para se mostrar bondoso, sensível, irónico e até paternal. Nas memórias que escreveram depois da revolução, os fiéis do “martirizado” Luís era assim que o lembravam.
Como hoje se lembram de Cunhal os militantes do PCP, os “companheiros de caminho” e umas largas dúzias de patetas. O indivíduo que planeava transformar Portugal numa espécie de Bulgária do Ocidente, o promotor do PREC, o responsável pelas “nacionalizações” e pela ocupação dos “latifúndios”, o desorganizador da economia, o inimigo da “Europa”, esse parece que desapareceu. Só resta, com muito sentimentalismo, como ele gostaria, a máscara do soberano, perante a qual ainda uma pequena parte do país se acha obrigada a genuflectir. A consciência histórica dos portugueses é um óptimo reflexo da inconsciência que os trouxe à miséria e ao desespero."
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