O MacGuffin: Não batam mais no ceguinho (texto longo e chato sobre assunto ultrapassado)

terça-feira, abril 14, 2009

Não batam mais no ceguinho (texto longo e chato sobre assunto ultrapassado)

Aparentemente (e digo aparentemente porque ainda não o vi em nenhum escaparate), a edição portuguesa já foi publicada. E, a avaliar pelas reacções, em Portugal a obra deverá situar-se entre a bosta e o proscrito. Leia-se o Rogério, aqui, e leia-se o comentário do Miguel Esteves Cardoso na edição de Março da (excelente, já agora) revista LER. Os ataques, como se escrevia na caixa de comentários do Pastoral Portuguesa, têm sido «demolidores», «certíssimos», autênticas sessões de «porrada».

Li o Intellectuals de Paul Johnson (é este o livro em causa) há coisa de cinco anos e, das duas uma: ou era, na altura, um perfeito débil mental, ou não entendi nada do que li (o que vai dar ao mesmo). Seja como for, a reacção indígena à publicação do livro, merece o meu esforço para dizer duas ou três baboseiras.

Paul Johnson escreveu Intellectuals com o objectivo legítimo, embora não original (já lá iremos), de bater nessa categoria profissional que dá pelo nome de «intelectuais». Mais em concreto, Johnson decidiu expor a céu aberto a ambiguidade de carácter, a inconsistência moral e a hipocrisia comportamental dos intelectuais. Para tal, e como não podia deixar de ser, Johnson escolheu as estrelas da companhia, ou seja, os mais proeminentes de entre os que se arrogaram no direito de pregar às massas a Verdade e de explicar como é que o mundo funcionava (mal) e deveria passar a funcionar (bem) caso alguém, algures, os escutasse ou, no limite, lhes concedesse poder.

O carácter controverso da obra de Johnson encontra-se na tese particular de que existe uma forte correlação entre, por um lado, a estrutura intelectual e os pronunciamentos morais, de natureza mais ou menos ortodoxa ou doutrinal, de quem se julga intelectual ou mentalmente apto a imiscuir-se na esfera dos interesses públicos; e, por outro, a personalidade e conduta pessoal do agente/autor. No fim do livro, o corolário de Johnson não podia ser mais claro: é fundamental que o common man beba uma boa dose de cepticismo na hora de processar os diktats morais e políticos produzidos por certas luminárias, já que, segundo Johnson, é gente de pouca confiança. Parafraseando o João Pereira Coutinho, quem espera pelo papel salvífico dos «intelectuais» devia, antes de mais, perguntar que tipo de gente se esconde por detrás dos seus sermões.

O que Johnson tentou de certa forma provar em Intellectuals, foi basicamente isso: regra geral, um pulha ou um escroque em privado jamais poderá produzir uma obra ou um pensamento moralmente são, politicamente consistente e historicamente profícuo. Desde logo porque, como Johnson tentou alertar particularmente bem no caso de Marx, os métodos usados andarão algures entre o vírus e a bactéria: serão duvidosos, rascas, gelatinosos e insidiosos. Acima de tudo, as conclusões supostamente racionais da produção intelectual dos seus autores mais tarde ou mais cedo revelar-se-ão contrárias à própria Razão.

O tema, repito, não é original. Aron, Popper, Berlin, Lilla e Jacob Talmon (com a tese de que o Sec. XVIII e XIX foram fartos em falsas doutrinas «racionalistas», baseadas num fervor religioso e em expectativas «messiânicas» que terão produzido a obsessão histérica em torno de conceitos como «raça», glorificação da «violência revolucionária», culto da personalidade e da iconografia, etc.) debruçaram-se sobre o assunto. O que separa Johnson do resto é a abordagem. Enquanto Aron ou Popper, por exemplo, se preocuparam mais em dissecar as incongruências filosóficas ou políticas de ortodoxias e ideologias em abstracto na hora de estas descerem ao terreno, Johnson procurou correlacionar o carácter e a personalidade dos seus autores no sentido de provar, ou de pelo menos alertar, para o facto de que uma personalidade estruturalmente desonesta e/ou amoral afasta o seu dono da autoridade moral de publicamente se pronunciar sobre a conduta do «povo» ou do «mundo» e, mais importante, da possibilidade de fazer perdurar no tempo os seu pensamentos como parte de um edifício respeitável, sólido, que importa visitar e revisitar.

Da leitura da obra, o Rogério concluiu o seguinte: "O corolário lógico do seu catálogo de objecções é evidente: se uma teoria perigosamente deficiente, como o marxismo, tivesse sido Revelada no Monte Sinai, as suas deficiências teriam em Paul Johnson o seu mais infatigável acólito." A meu ver, concluiu mal (uma discordância que se traduz numa dor aguda que, estou certo, ele também partilhará). O corolário é outro: seria improvável que o marxismo – uma teoria perigosamente errada – tivesse sido dado à luz no Monte Sinai porque, e esse é o ponto, seria improvável que uma erva daninha crescesse naquele solo. A expressão é «seria improvável» e não «jamais» ou «impossível». Do que Johnson fala é de cepticismo e de desconfiança, na medida em que uma alma eticamente instalável, pouca amiga do rigor e pouco dada à honestidade intelectual, dificilmente terá as "moral and judgmental qualifications for the task" (sic). Porque, conclui Johnson, a atitude perante a verdade e as evidências factuais será potencialmente tortuosa, doentia ou instável (ao contrário dos rasgos de génio de Paris Hilton.) Lembremo-nos do comportamento altamente dúbio e nojentinho de Brecht na época da caça às bruxas de Parnell Thomas (ler, também, Anything Your Little Heart Desires de Patricia Bosworth, filha de Bartley Crum) e facilmente se percebe onde Johnson quer, ou quis, chegar. À cautela, desconfie-se e aborde-se a obra de forma particularmente crítica, parece avisar Johnson.

O texto sobre Marx é, aliás, o paradigma da tese de Johnson, paradigma que o Rogério se recusou a compreender pela simples razão de Johnson ter cometido o pecado capital de se referir, a espaços, a minudências e mesquinhices, como as calças rotas ou B.O. do velho Karl, resultado de uma higiene pessoal pouca dada a sabonetes. Pondo de parte eventuais exageros de pormenor (que, no geral, estão longe de manchar o livro de forma catastrófica), a ideia de Johnson, a meu ver largamente conseguida, foi a de retratar um homem que transpôs para a sua produção intelectual (filosófica e política) muitas das suas características psicológicas e de carácter. O pendor racista e anti-semita de Marx, a forma imoral como viveu à custa da família Engels, a total inabilidade para lidar com o dinheiro, o gosto pela violência, o apetite pelo poder, a sede de protagonismo e o snobismo intelectual são características que se encontram invariavelmente reflectidas no seu trabalho intelectual. E são, simultaneamente, a causa de sinuosos métodos, supostamente científicos, que conduziram a, ou pelo menos acentuaram, deformidades estruturais que marcam indelevelmente as obras. Longe de cientificamente válidas e factualmente rigorosas, as obras de Marx, em especial O Capital, estão pejadas de incongruências, distorções e omissões graves. Marx não esteve interessado em perceber o mundo através dos factos e da interacção e interligação destes, mas sim em ajustar os factos a uma verdade (a sua verdade) pré-estabelecida, a provar a todo o custo: a de que o capitalismo, por natureza, resulta numa progressiva, imparável e insustentável exploração dos trabalhadores pelos donos do capital. Escuso-me de explicar que, já à data da publicação da obra e até aos nossos dias, o homem estava redondamente enganado (e sim, estou a medir as palavras tendo em conta a época que atravessamos, onde, aparentemente e segundo alguns especialistas de sofá, o Sr. Marx acertou em tudo menos no Euromilhões).

O texto vai longo. Termino com uma observação. Houve quem atacasse Johnson por, ele próprio, não ser exemplo para ninguém (o Rogério, por exemplo). Ou seja, Johnson não poderia, nem deveria, pregar a moral e os bons costumes quando os armários lá de casa cospem esqueletos, tamanha é a pressão acumulada. Mal que pergunte mas, dizer isso de Johnson não é usar da mesma metodologia que se se contesta no historiador?

1 Comentários:

Blogger margarida disse...

Sublime. Li de madrugada, mas a essas desoras nem conseguia redigir ‘sublime’.
Reli depois. Qual ’longo’! Qual ‘chato’!
É absolutamente formidável lermos o que pensamos mas não sabemos dizer!
É um alívio, aliás…
Seja ‘longamente chato’ sempre que lhe der na veneta, que eu agradeço.
Penhoradamente!
A propósito, sugeriria que espreitasse isto:
http://dererummundi.blogspot.com/2009/04/como-nao-discutir-ideias.html

3:25 da tarde  

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