O MacGuffin: “Sempre assim foi”

segunda-feira, junho 06, 2005

“Sempre assim foi”

Indignado, o povo perdeu o apetite face ao sórdido «esquema» de um Sr. Ministro acumular reforma do Banco de Portugal (por lá ter andado a picar o ponto ao longo de cinco anos) com ordenado de ministro. E, horror dos horrores, tudo de forma legal e, como é agora moda dizer-se, «legítima». Como é possível? Como bem lembrou Vasco Pulido Valente (transcrevo o artigo mais à frente), este episódio insere-se na longa e milenar lista de «reformas», «comissões», «benesses» e «expedientes» que o Estado sempre apadrinhou, promoveu e pagou aos seus mais dilectos e distintos servidores – os quais, de tempos a tempos, prestam ao país e ao common good serviços inestimáveis em cargos de «desgaste rápido». De quando em vez, a moral e a ética republicanas vêm à baila perante tais descriminações «positivas» e, com elas, a bendita indignação colectiva. Sempre assim foi? Sim: sempre foi assim. Tudo, aliás, continua a ser «assim». Da mesma forma que as «medidas» se limitam a varrer um pouco da sujidade (boa parte para debaixo do tapete), esta questiúncula é apenas a ponta do icebergue. Por detrás da dita jaz um Estado Providência que a todos quer chegar e de que todos esperam um dia retirar uma «benesse» ou o salvifico vínculo (“ai o meu Zé agora está muito bem: já tem um vinculo na função pública”). A novela do ministro que já-agora-como-é-tudo-legal-e-legítimo-pode-ser-que-passe-que-eu-não-estou-para-pagar-a-crise é só uma a somar a milhares de outras, de igual ou diferente natureza ou proporção. A uni-las encontramos essa entidade omnipresente e omnipotente que se confunde e funde com nós próprios – o país parece ser o Estado, e vice-versa - e da qual esperamos apoio, solidariedade e, porque não, amor, independentemente de estarmos ou não necessitados. É porque tem de ser. É porque é «legal». É porque o vizinho também conseguiu.

São, por isso, de louvar algumas medidas agora enunciadas. Só que, como é apanágio de todos os governos em Portugal, está visto que vamos ficar a meio caminho. Ou, como agora se diz, a armada Sócrates vai “morrer na praia”.

Sempre foi assim
por VASCO PULIDO VALENTE in Público
“O sr. ministro das Finanças recebe uma reforma de 8.000 euros por mês do Banco de Portugal, onde trabalhou meia dúzia de anos; reforma que acumula com o seu ordenado de ministro (bastante mais modesto) e que ele considera um "direito adquirido". O sr. ministro Mário Lino (Obras Públicas) recebe duas reformas, uma do IPE e outra da Segurança Social, à volta de 6.000 euros, que também acumula com o seu ordenado de ministro e provavelmente também acha um "direito adquirido". Perante isto, como de costume, a inveja portuguesa berrou logo pela "moral" e a "ética" e teve o seu obrigatório ataque de indignação. A indignação, ao que parece, alivia. Mas não explica e era, já agora, conveniente perceber por que razões dois cavalheiros honestíssimos fazem estas coisas sem um sobressalto.
Vi há pouco tempo o sr. ministro das Finanças na televisão, justificando as "medidas" que tomou e as que vai tomar. Muito eficiente e preciso lá foi dando o seu recado: põe aqui, tira ali, rapa acolá. Em mais de uma hora de conversa, nunca se falou da sociedade portuguesa - da sua história, da sua formação, da sua natureza - como nunca se falou do Estado parasitário e providencial, que sufoca o país. De toda a evidência, para o sr. ministro a crise não passa de um pequeno problema de corte e costura. Quem chegasse de Sirius não percebia com certeza que se tratava de Portugal. O sr. ministro é um funcionário, um contabilista qualificado, que o eng. Sócrates destacou para aquele lugar e que tenta "cumprir" com ciência e zelo. E, pelo que sei dele, o sr. Mário Lino não deve ser diferente. Ora, se a um verdadeiro político poderia ocorrer que não se está no governo com uma pensão de reforma, um funcionário naturalmente não acha que uma "comissão de serviço", seja ela no governo, altere, e muito menos prejudique, os direitos que adquiriu. Nada a criticar, excepto, claro, a maneira como se escolhem ministros.
De resto, se este caso se tornou conspícuo, na essência não sai da regra universal da protecção corporativa. O Banco de Portugal e o IPE tomam carinhosamente conta dos seus, como tomam milhares de outras corporações, do ensino ao futebol e do público ao privado, sem o mais leve protesto de ninguém. Vivemos no reino dos compadres. Nem o sr. ministro das Finanças, nem o sr. Mário Lino se desviaram do padrão consagrado. Que esse padrão em grande parte contribui para conservar o país na miséria e no caos, não se discute. Mas sempre foi assim.”

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