O MacGuffin: O nosso Eduardo

quarta-feira, maio 04, 2005

O nosso Eduardo

Em artigo da praxe, o Prof. Dr. Eduardo Prado Coelho volta a escancarar a céu aberto a sua paroquial altivez e a sua pueril arrogância, com direito, como é seu apanágio, a recadinhos cirúrgicos (ou, numa perspectiva mais benigna e complacente, o Prof. Dr. Eduardo Prado Coelho volta a doar às massas mais uma brilhante elucubração sobre a rasteira actividade do povaréu).

Sob o sugestivo título “Prova Oral”, o Prof. Dr. Eduardo Prado Coelho - um vulto da intelectualidade lusa pós-moderna e neo-marxista - resolveu discorrer sobre as aventuras e desventuras da ralé, em matéria de hábitos literários. Segundo o douto intelectual, tudo volta a confluir no sentido de validar a mãe de todas as teses, que é a sua desde tempos imemoráveis: o povo, quando não é estúpido, é ignorante; e quando não é ignorante, é estúpido.

O nosso Eduardo - passemos a este tratamento mais intimista e carinhoso, já que EPC é já património nacional, quiçá mesmo da humanidade – o nosso Eduardo, dizia, chegou à conclusão, por exemplo, de que o povo (essa abstracta massa uniforme) ora liga peva à música clássica (leia-se «erudita»), ora quando se predispõe a fazê-lo, escolhe sempre os piores motivos, momentos e sítios – um «festival» ou uma «festa» em locais muito povoados. E sempre sob registo epiléptico.

No mesmíssimo sentido, diz-nos o nosso Eduardo que o povo (novamente, a «massa» homogénea) ora lê pouco (A Bola, o Rekord, A Capital, O Capital), ora lê muito, mas, neste caso, entregando-se ao que não presta, i.e., ao lixo literário ou ao que está na berra (que é mais ou menos a mesma coisa). O nosso Eduardo faz mesmo eco da ideia de que vivemos, por estes dias, numa espécie de limbo existencial - «complexo», obtuso, esquisito - recheado de epifenómenos – o livro do filósofo Gil, os livros do Dan Brown, a proliferação de «novas livrarias, pouco profissionais e muito afectivas, que vão surgindo sobretudo nas pequenas cidades universitárias» - que mais não são do que sinais de uma temível enfermidade que por aí alastra e a todos consome. Pelo meio, o nosso Eduardo lamenta-se: «E vemos no concurso "Um contra todos": uma pessoa não faz a menor ideia de quem escreveu "Guerra e Paz".»

Eu, por exemplo, nunca li o Guerra e Paz. Sei, contudo, que foi um tal de Tolstoi que o escreveu. Na óptica do nosso Eduardo, não ler o Guerra e Paz mas saber quem o escreveu, faz, obviamente, toda a diferença. E eu imagino a miséria espiritual e a infelicidade dos rebanhos que, sem orientação divina ou intelectual (do nosso Eduardo, por exemplo), nunca leram Tolstoi, Joyce ou Schopenhauer. Uma sociedade que produz espécies humanas que nunca leram, nem lerão, o Guerra e Paz ou o Ulisses, e que nem sequer sabem quem escreveu essas obras magnas, é uma sociedade à beira da catástrofe. Sem emenda. Moral e esteticamente falida.

De resto, e em boa verdade, o nosso Eduardo não se desviou um milímetro da velha síndrome da «barata tonta». De tempos a tempos, o nosso Eduardo faz questão de revelar a confusão e o desarranjo que habitam as suas meninges, revelação, aliás, entremeada pela sua habitual postura de Hiperíon entre sátiros. Ao fim destes anos, o nosso Eduardo continua a apanhar papéis face a uma série de fenómenos que deixaram há muito de ser inéditos: a democratização dos gostos; a liberdade individual de escolha (de escolher, por exemplo, uma via diferente da preconizada por ele); a massificação e a hiper-produção literárias; o culto do livro, como objecto de consumo; a perda da influência doutoral e «doutrinária» de uma certa intelligentsia. E por aí fora.

O recadinho às livrarias* «pouco profissionais e muito afectivas» das «pequenas cidades universitárias» é mais do mesmo. O nosso Eduardo acaba por ver nessas livrarias os agentes da «nova ordem» - a da «cultura obesa do livro». Ao nosso Eduardo faz-lhe imensa confusão que uma livraria de província tenha o desplante de organizar um debate em torno do livro de José Gil, não só com a presença do autor, mas, sobretudo, com a presença, em peso (horror dos horrores!), do «povo». Da choldra. E, pasme-se, sem a sua presença ou a dos seus. Não que o nosso Eduardo se predispusesse a misturar-se com a ralé que consome o José Gil (porque é moda), o Dan Brown (porque é light e místico) ou corre, expedita, para os «festivais» de música clássica. Nada disso. O nosso Eduardo queria viver num mundo diferente. Um mundo previsível, certinho, planificado, arrumadinho, compartimentado. Um mundo em que os comportamentos, gostos e tiques do povo permanecessem cristalizados (leia-se «toscos»), à parte dos de um restrito grupo de luminárias que, da capital, defendesse «o que deve ser» e planificasse «como deve ser». Um mundo que não permitisse qualquer tipo de intrusão entre o «popular» e o «erudito», entre o «consumismo» e a «cultura», entre o «povo» e as «elites». Um mundo acompanhado de perto por uma elite que ditasse os critérios, supervisionasse os desvios e escolhesse quem, como e quando. O nosso Eduardo está nitidamente incomodado. O tempo e os modos escapam-se-lhe da mão.

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*PS: tenho acompanhado o esforço quase sobre-humano de uma «nova» livraria de uma «pequena cidade universitária» (Évora). Por ter conhecimento do trabalho desenvolvido por essa livraria nos últimos quatro anos – um trabalho que tem envolvido as escolas da cidade, a vinda de autores, o debate em torno de livros, a tradição oral do conto, etc. etc. - não posso deixar de referir que, para além de injustas, as palavras de EPC se revestem de um carácter quase ofensivo. Sei que, há uns tempos atrás, EPC passou uns dias em Évora. Li as suas crónicas na altura. Só posso lamentar que, ao invés de discorrer sobre restaurantes de quinta categoria dirigidos por boçais, não se tivesse informado desse trabalho. Essa informação ter-lhe-ia poupado o esforço dos recadinhos e as boquinhas da praxe.

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