O MacGuffin: Da liberdade de imprensa

quarta-feira, março 30, 2005

Da liberdade de imprensa

“(…) Recordo uma observação em Tácito sobre os romanos no tempo do Império, de que eles nem toleravam a escravidão total, nem a liberdade total, Nec totam servitutem, nec totam libertatem pati possunt. Um célebre poeta traduziu essa observação aplicando-a aos ingleses na sua viva descrição da política e do governo de Isabel:

Et fit aimer son joug a l’Anglois indompté,
Qui ne peut ni servir, ni vivre en liberte.

Henriade, livro I

De acordo com essas observações, consideraremos o governo à época dos imperadores como uma mistura entre despotismo e liberdade, com prevalência do primeiro; e o governo inglês, como uma mistura do mesmo género em que predomina a liberdade. Conforme a observação precedente, a consequência que se deve esperar de formas de governo mistas como essas é o surgimento de cautela e desconfiança entre as partes constituintes. Alguns imperadores romanos estão entre os mais terríveis tiranos que já desgraçaram a natureza humana, e é evidente que a sua crueldade era incitada principalmente pela desconfiança; pois observaram que não agradava aos homens notáveis de Roma o predomínio de uma família que até então não era, sob nenhum aspecto, mais eminente que as suas próprias. Por outro lado, como a parte republicana do governo prevalece na Inglaterra, ainda que com uma grande mistura de monarquia, ela é obrigada, para a sua própria preservação, a vigiar os magistrados com desconfiança, a privá-los de todos os seus poderes descricionários e a assegurar a vida e a fortuna de cada um por meio de leis gerais e inflexíveis. Nenhuma acção que a lei não determina claramente como criminosa pode ser considerada como tal; nenhum crime pode ser imputado a um homem senão por meio de uma prova legal apresentada aos que o julgam; e, como tais juízes devem ser seus consúditos, o seu próprio interesse obriga-os a manter um olhar atento sobre as transgressões e violências dos ministros. Disso resulta que há na Grã-Bretanha muito mais liberdade, e talvez mesmo mais licenciosidade do que havia escravidão e tirania em Roma.
Esses princípios explicam a grande liberdade de imprensa neste reino para além do que se permite em qualquer outro governo. Apreende-se que o poder arbitrário se instauraria entre nós se não tivéssemos o cuidado de impedir o seu progresso: e não há método mais simples para isso do que soar o alarme de uma ponta à outra do reino. O espírito do povo deve ser frequentemente instigado para frear a ambição da corte; e o temor que daí resulta deve ser empregado para impedir essa ambição. Nada é tão eficaz para esse propósito quanto a liberdade de imprensa, pela qual toda a erudição, engenho e génio da nação são empregados em prol da liberdade, mobilizando todos em sua defesa. Assim, enquanto a parte republicana do nosso governo for capaz de se opor à monarquia, é natural que esta última tenha o cuidado de manter a imprensa livre, dada a sua importância para a sua própria preservação.
Deve-se entretanto admitir que a liberdade ilimitada da imprensa, ainda que seja difícil propor um remédio adequado a ela, é um dos males atinentes às formas mistas de governo.”


David Hume in Ensaios Políticos (Martins Fontes 2003)
(a partir de Essays and Treatises on Several Subjects. In Two Volumes, vol. I, “Containing Essays, Moral, Political and Literary”, Londres e Edimburgo 1772)

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