Ainda (e sempre) a globalização
(corrigido, seguido de adenda)
Via Technorati descubro isto. Segundo o seu autor, a forma como fiz eco das palavras de David Brooks são o exemplo da confusão que reina na minha cabeça sobre o que é a globalização, razão pela qual insisto em não perceber que “ela pode ser feita de outro modo”(sic).
A sério? Eu acho que não. De «outro modo» como? O que significa «de outro modo»? O autor do blogue refere os nomes, já por mim citados, de Ana Drago, Mário Soares, Bono e Springsteen. Para quê? Esta gente já alguma vez apontou, em concreto, uma «outra via»? Do que é que falamos quando falamos de «outro modo»?
De superestruturas que organizem o comércio e a industria à escala mundial, com direito a policiamento, e que substituam as tradicionais «organizações capitalistas»?
De impedir que o sistema capitalista se instale e progrida em paragens exóticas?
O «outro modo» é sinónimo da aplicação de uma suposta taxa salvífica, a incidir sobre as transacções financeiras internacionais, para descargo de consciências?
Com o «outro modo» quer insinuar-se que os países a ocidente (os da União Europeia e os EUA) estão na disposição de acabar de vez com a hipocrisia, aligeirando ou cessando as políticas de embargo aos produtos do Terceiro Mundo (via subsídios às suas produções e a taxas e barreiras alfandegárias)?
De «outro modo» significa que se deve barrar a entrada às multinacionais nos países pobres? Ou, pelo contrário, escancarar as fronteiras ao investimento externo?
De «outro modo» significa que a verdade deve ser contada explicada, ou seja, que o investimento externo dos países ricos em países do Terceiro Mundo (o tal investimento que explora até ao tutano os pobrezinhos) é, afinal, e a meu ver infelizmente, diminuto e que, ao contrário do que se apregoa, as unidades de produção das multinacionais abroad, para além de darem emprego a quem o procura avidamente (sobretudo mulheres), são responsáveis pelo aumento do nível médio de remunerações domésticas?
De «outro modo» quer dizer que os governos a ocidente, com a ajuda do Sr. Bono, do Dr. Soares e da doce Drago, serão os primeiros a dar as más notícias às suas populações, no que respeita ao aumento da taxa de desemprego, quando chegar a hora de deslocar investimentos para os países pobres (coisa que não se passa actualmente porque a esmagadora maioria dos investimentos externos faz-se dentro do círculo de países da OCDE e, quanto muito, na direcção de países remediados)?
Lançado no ar, em tom redentor e esperançoso, o de outro modo nada significa. Não passa de conversa da treta.
O que David Brooks quis dizer, e que eu subscrevo na íntegra, é que ao invés de procurar «outros modos» e anunciar «outras vias», seria bom que esses artistas, que promíscua e interesseiramente misturam o seu estatuto de stars com mensagens político-ideológicas, percebessem que o mundo é demasiado complexo para planificações da estaca zero. Já seria uma vitória se esses mosqueteiros olhassem para o que os factos nos indicam, de forma clara e sem rodeios: que os ganhos que a actual globalização produziu ao longo dos últimos cinquenta anos, em matéria de desenvolvimento e de combate à pobreza, são significativos.
Just once, I'd like to see someone like Bono or Bruce Springsteen stand up at a concert and speak the truth to his fan base: that the world is complicated and there are no free lunches”, escreve David Brooks. É claro, demasiado claro para servir de bandeira, que nem tudo corre bem. É óbvio, demasiado óbvio para insultar a inteligência alheia, que a globalização traz consigo problemas e efeitos secundários que importa corrigir ou, no mínimo, vigiar. O que estes impolutos paladinos dos mais nobres interesses; o que estes sacrossantos que parecem carregar na barriga o rei da bondade; o que estes filantropos que adoram publicamente pavonear a sua «humanidade» e o seu «altruísmo» acabam por revelar, é a sua notória má consciência pelo facto de, eles próprios, sorverem que nem ursos o mel produzido pelo «ímpio sistema» de que fazem parte e ajudam a sustentar. Não que o «sistema» seja maligno ou consciente e ontologicamente funesto. A questão é que a rama assusta-os ao ponto de a confundir com a árvore. Misturam alhos com bugalhos. Observam as imagens de miúdos a serem explorados pela Nike no Butão e daí concluem, lestos e horrorizados, que a globalização é «aquilo». Resistem e recusam aceitar que os ganhos da globalização suplantam os problemas. Há ainda aqueles pseudo-moderados que tentam dar a volta ao texto, aliando à globalização (que eles juram adorar) a tese da «outra via». De que tudo, afinal, pode ser feito de «outro modo». Mas o ponto de partida é o mesmo: olham os maus exemplos e os problemas associados à globalização e cegam relativamente aos seus benefícios e ao seu inegável contributo para a redução da pobreza à escala mundial. “Ah, mas há cada vez mais pobres!”, gritam, confundindo valores absolutos com valores relativos. “Ah, mas o fosso entre os mais pobres e os mais ricos é agora maior!”, asseguram, sem se dar conta de que a volumosa e maioritária massa que se situa no meio está hoje exponencialmente melhor do que há cinquenta ou cem anos atrás.
O mundo em que vivemos é imperfeito? Poderia, ou poderá, ser melhor? É importante denunciar excessos e prevenir abusos? Claro que sim. A situação está longe de ser perfeita. Não preciso – não precisamos – que os Dr. Soares e as Anas Dragos deste mundo me venham explicar o óbvio. Existem no mundo cerca de 800 milhões de pessoas a passar fome - um número assustador apesar de sabermos que a percentagem de famintos decresceu drasticamente nos últimos cinquenta anos. Vivem actualmente no mundo cerca de 1,2 milhões de pobres. É muito, mesmo que em termos relativos o nível de pobreza tenha diminuído acentuadamente. Nesta contabilidade, é importante que se refira o que esta civilização – que uns apelidam de disfuncional, abjecta, podre, esgotada, etc. – conseguiu alcançar por via do desenvolvimento industrial e tecnológico, do incremento das trocas comerciais, da mobilidade de pessoas e meios. Durante o século XX, a esperança média de vida mais do que duplicou: passou de 30, no início do século, para 67 anos. A proporção de pessoas que passam fome passou de 35% para 18%, e espera-se que em 2010 baixe para 12%. Segundo essa projecção, estaremos em 2010 a alimentar de forma adequada mais de 3 biliões de pessoas. O nível de iliteracia nos países do Terceiro Mundo, passou de 75% para 20%. Ou seja, algo de extraordinário foi alcançado com o actual «sistema», onde está incluída a proscrita globalização.
A questão levantada por Brooks prende-se com isto. Existe uma distância enorme entre a) reconhecer e reflectir sobre uma realidade «real» (passe o pleonasmo), avançando com soluções sensatas e exequíveis, não sem antes executar a devida «análise de sensibilidade» e reconhecer os méritos de um sistema que não pode ser, de todo, desprezado; e b) berrar acerca de questões sobre as quais pouco se sabe (simplificando e diabolizando), negando as evidências que saltam à vista e pensando que o mundo pode parar para que um grupo de iluminados indique o caminho. O mundo, está bom de ver, não pára. No momento em que escrevo estas linhas, tenho a certeza que existe gente a ser explorada de forma inumana por pessoas e organizações sem escrúpulos. Sei, também, que outros, ainda que sujeito a «exploração» à luz dos padrões laborais ocidentais (apregoados pelos Carvalhos da Silva), conseguem hoje matar a fome ao fim do dia e amealhar dinheiro para viver de forma mais ou menos digna, coisa impensável há uns anos atrás, antes da presença física das organizações capitalistas e «imperialistas» (mesmo levando em linha de conta que vivem imensos furos abaixo do ocidental típico - o tal que, num dia, pode esbanjar centenas de euros na FNAC em livros sobre a globalização). Outros há que estão a ser «explorados» de forma correcta e justa, em países que fizeram questão de escancarar as suas portas à livre iniciativa e ao comércio livre, fazendo hoje parte da engrenagem da «globalização».
É sempre fácil recorrer à retórica do «anti-sistema» e das «novas vias». Difícil é, de dentro, reconhecer com desassombro e sem medo as qualidades e potencialidades do sistema, e ajudar construtivamente a corrigir o que não vai correndo de feição.
Alonguei-me, eu sei. Para mais elucubrações sobre o assunto, e se ainda estiverem acordados, podem passar os olhos pelas minhas 'postas' passadas (aqui, aqui e aqui).
Adenda: O André respondeu de forma verdadeiramente impecável aos meus encanitamentos. Fê-lo com classe, sem levar à letra os meus pontuais abespinhamentos. Afirma ele, agora, que eu agrupo as pessoas em dois grupos: pró e contra a globalização. É verdade. Nestas coisas, ou se é a favor ou se é contra. Não há aqui lugar a equidistâncias. Ou se acredita no sistema, para além dos seus defeitos, ou não. Aos «moderados», do tipo do André, faço questão de os alinhar no grupo dos pró-globalização. O problema são mesmo os falsos moderados, adeptos das meias-tintas e dos nins, incapazes de pensar para além da ideologia e dos maniqueísmos, e que se servem da árvore para iludir a floresta. Foram estes os visados do meu post. Quanto ao André, passa a ser cá de casa.
Via Technorati descubro isto. Segundo o seu autor, a forma como fiz eco das palavras de David Brooks são o exemplo da confusão que reina na minha cabeça sobre o que é a globalização, razão pela qual insisto em não perceber que “ela pode ser feita de outro modo”(sic).
A sério? Eu acho que não. De «outro modo» como? O que significa «de outro modo»? O autor do blogue refere os nomes, já por mim citados, de Ana Drago, Mário Soares, Bono e Springsteen. Para quê? Esta gente já alguma vez apontou, em concreto, uma «outra via»? Do que é que falamos quando falamos de «outro modo»?
De superestruturas que organizem o comércio e a industria à escala mundial, com direito a policiamento, e que substituam as tradicionais «organizações capitalistas»?
De impedir que o sistema capitalista se instale e progrida em paragens exóticas?
O «outro modo» é sinónimo da aplicação de uma suposta taxa salvífica, a incidir sobre as transacções financeiras internacionais, para descargo de consciências?
Com o «outro modo» quer insinuar-se que os países a ocidente (os da União Europeia e os EUA) estão na disposição de acabar de vez com a hipocrisia, aligeirando ou cessando as políticas de embargo aos produtos do Terceiro Mundo (via subsídios às suas produções e a taxas e barreiras alfandegárias)?
De «outro modo» significa que se deve barrar a entrada às multinacionais nos países pobres? Ou, pelo contrário, escancarar as fronteiras ao investimento externo?
De «outro modo» significa que a verdade deve ser contada explicada, ou seja, que o investimento externo dos países ricos em países do Terceiro Mundo (o tal investimento que explora até ao tutano os pobrezinhos) é, afinal, e a meu ver infelizmente, diminuto e que, ao contrário do que se apregoa, as unidades de produção das multinacionais abroad, para além de darem emprego a quem o procura avidamente (sobretudo mulheres), são responsáveis pelo aumento do nível médio de remunerações domésticas?
De «outro modo» quer dizer que os governos a ocidente, com a ajuda do Sr. Bono, do Dr. Soares e da doce Drago, serão os primeiros a dar as más notícias às suas populações, no que respeita ao aumento da taxa de desemprego, quando chegar a hora de deslocar investimentos para os países pobres (coisa que não se passa actualmente porque a esmagadora maioria dos investimentos externos faz-se dentro do círculo de países da OCDE e, quanto muito, na direcção de países remediados)?
Lançado no ar, em tom redentor e esperançoso, o de outro modo nada significa. Não passa de conversa da treta.
O que David Brooks quis dizer, e que eu subscrevo na íntegra, é que ao invés de procurar «outros modos» e anunciar «outras vias», seria bom que esses artistas, que promíscua e interesseiramente misturam o seu estatuto de stars com mensagens político-ideológicas, percebessem que o mundo é demasiado complexo para planificações da estaca zero. Já seria uma vitória se esses mosqueteiros olhassem para o que os factos nos indicam, de forma clara e sem rodeios: que os ganhos que a actual globalização produziu ao longo dos últimos cinquenta anos, em matéria de desenvolvimento e de combate à pobreza, são significativos.
Just once, I'd like to see someone like Bono or Bruce Springsteen stand up at a concert and speak the truth to his fan base: that the world is complicated and there are no free lunches”, escreve David Brooks. É claro, demasiado claro para servir de bandeira, que nem tudo corre bem. É óbvio, demasiado óbvio para insultar a inteligência alheia, que a globalização traz consigo problemas e efeitos secundários que importa corrigir ou, no mínimo, vigiar. O que estes impolutos paladinos dos mais nobres interesses; o que estes sacrossantos que parecem carregar na barriga o rei da bondade; o que estes filantropos que adoram publicamente pavonear a sua «humanidade» e o seu «altruísmo» acabam por revelar, é a sua notória má consciência pelo facto de, eles próprios, sorverem que nem ursos o mel produzido pelo «ímpio sistema» de que fazem parte e ajudam a sustentar. Não que o «sistema» seja maligno ou consciente e ontologicamente funesto. A questão é que a rama assusta-os ao ponto de a confundir com a árvore. Misturam alhos com bugalhos. Observam as imagens de miúdos a serem explorados pela Nike no Butão e daí concluem, lestos e horrorizados, que a globalização é «aquilo». Resistem e recusam aceitar que os ganhos da globalização suplantam os problemas. Há ainda aqueles pseudo-moderados que tentam dar a volta ao texto, aliando à globalização (que eles juram adorar) a tese da «outra via». De que tudo, afinal, pode ser feito de «outro modo». Mas o ponto de partida é o mesmo: olham os maus exemplos e os problemas associados à globalização e cegam relativamente aos seus benefícios e ao seu inegável contributo para a redução da pobreza à escala mundial. “Ah, mas há cada vez mais pobres!”, gritam, confundindo valores absolutos com valores relativos. “Ah, mas o fosso entre os mais pobres e os mais ricos é agora maior!”, asseguram, sem se dar conta de que a volumosa e maioritária massa que se situa no meio está hoje exponencialmente melhor do que há cinquenta ou cem anos atrás.
O mundo em que vivemos é imperfeito? Poderia, ou poderá, ser melhor? É importante denunciar excessos e prevenir abusos? Claro que sim. A situação está longe de ser perfeita. Não preciso – não precisamos – que os Dr. Soares e as Anas Dragos deste mundo me venham explicar o óbvio. Existem no mundo cerca de 800 milhões de pessoas a passar fome - um número assustador apesar de sabermos que a percentagem de famintos decresceu drasticamente nos últimos cinquenta anos. Vivem actualmente no mundo cerca de 1,2 milhões de pobres. É muito, mesmo que em termos relativos o nível de pobreza tenha diminuído acentuadamente. Nesta contabilidade, é importante que se refira o que esta civilização – que uns apelidam de disfuncional, abjecta, podre, esgotada, etc. – conseguiu alcançar por via do desenvolvimento industrial e tecnológico, do incremento das trocas comerciais, da mobilidade de pessoas e meios. Durante o século XX, a esperança média de vida mais do que duplicou: passou de 30, no início do século, para 67 anos. A proporção de pessoas que passam fome passou de 35% para 18%, e espera-se que em 2010 baixe para 12%. Segundo essa projecção, estaremos em 2010 a alimentar de forma adequada mais de 3 biliões de pessoas. O nível de iliteracia nos países do Terceiro Mundo, passou de 75% para 20%. Ou seja, algo de extraordinário foi alcançado com o actual «sistema», onde está incluída a proscrita globalização.
A questão levantada por Brooks prende-se com isto. Existe uma distância enorme entre a) reconhecer e reflectir sobre uma realidade «real» (passe o pleonasmo), avançando com soluções sensatas e exequíveis, não sem antes executar a devida «análise de sensibilidade» e reconhecer os méritos de um sistema que não pode ser, de todo, desprezado; e b) berrar acerca de questões sobre as quais pouco se sabe (simplificando e diabolizando), negando as evidências que saltam à vista e pensando que o mundo pode parar para que um grupo de iluminados indique o caminho. O mundo, está bom de ver, não pára. No momento em que escrevo estas linhas, tenho a certeza que existe gente a ser explorada de forma inumana por pessoas e organizações sem escrúpulos. Sei, também, que outros, ainda que sujeito a «exploração» à luz dos padrões laborais ocidentais (apregoados pelos Carvalhos da Silva), conseguem hoje matar a fome ao fim do dia e amealhar dinheiro para viver de forma mais ou menos digna, coisa impensável há uns anos atrás, antes da presença física das organizações capitalistas e «imperialistas» (mesmo levando em linha de conta que vivem imensos furos abaixo do ocidental típico - o tal que, num dia, pode esbanjar centenas de euros na FNAC em livros sobre a globalização). Outros há que estão a ser «explorados» de forma correcta e justa, em países que fizeram questão de escancarar as suas portas à livre iniciativa e ao comércio livre, fazendo hoje parte da engrenagem da «globalização».
É sempre fácil recorrer à retórica do «anti-sistema» e das «novas vias». Difícil é, de dentro, reconhecer com desassombro e sem medo as qualidades e potencialidades do sistema, e ajudar construtivamente a corrigir o que não vai correndo de feição.
Alonguei-me, eu sei. Para mais elucubrações sobre o assunto, e se ainda estiverem acordados, podem passar os olhos pelas minhas 'postas' passadas (aqui, aqui e aqui).
Adenda: O André respondeu de forma verdadeiramente impecável aos meus encanitamentos. Fê-lo com classe, sem levar à letra os meus pontuais abespinhamentos. Afirma ele, agora, que eu agrupo as pessoas em dois grupos: pró e contra a globalização. É verdade. Nestas coisas, ou se é a favor ou se é contra. Não há aqui lugar a equidistâncias. Ou se acredita no sistema, para além dos seus defeitos, ou não. Aos «moderados», do tipo do André, faço questão de os alinhar no grupo dos pró-globalização. O problema são mesmo os falsos moderados, adeptos das meias-tintas e dos nins, incapazes de pensar para além da ideologia e dos maniqueísmos, e que se servem da árvore para iludir a floresta. Foram estes os visados do meu post. Quanto ao André, passa a ser cá de casa.
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