O MacGuffin

segunda-feira, abril 26, 2004

PELA MANHÃ, A LUZ
Do leitor António “Nestum Com Mel”:

”Caro MacGuffin:

Achei muito bem a transcrição da crónica do dr. Vasco Pulido Valente no seu blogue, sem nenhum comentário adicional porque o que é perfeito não se comenta: estampa-se e pronto. Sem mais. Gostei sobretudo do pormenor da fotografia do santo no fim, como uma singela homenagem do seu fiel seguidor. Aliás, gosto de visitar o contra-a-corrente com a mesma curiosidade de quem bate palminhas numa sala enorme e vazia para lhe perceber a reverbação: o MacGuffin lê os blogues predilectos com uma atenção que eu invejo -- desde pequeno que tenho falhas de concentração -- e depois regozija, dá cambalhotas, salta os sofás, calculo que abrace os vizinhos de lágrima pendente do canto do olho e então escreve sobre o que leu, carimba a genialidade da coisa, deixa o link. Depois escreve também e, enquanto escreve, imagina os acenos afirmativos das cabecinhas inteligentes e adoradas dos seus leitores bloguistas preferidos. Se alguma vez decidir mudar de nome ao blogue, câmara-de-eco não é mau (não, não, ora essa, fique com os direitos da autoria do nome).

Para terminar, aconselhá-lo-ia a consultar o seu ortopedista: é que, pelo que deduzo, as lentes grossas que usa para filtrar e converter a realidade e não ser ferido com cores que não quer que façam parte do espectro, devem ser muito pesadas; somando a elas o peso das certezas todas que já carrega -- tenha calma, caro MacGuffin, é ainda muito novo, abarque uma certeza de cada vez --, receio que a sua estrutura óssea, daqui a cinquenta anos, lhe torne as mudanças de estação particularmente dolorosas.

António.


Comentário:
Há pessoas que nos despem mentalmente. Há pessoas cuja sagacidade e poder de análise «do outro» permitem tornar transparentes anos e anos de opacidade e de evasivas mais ou menos disfarçadas. Quanto a isso, nunca tive ilusões. Sabia que, mais dia, menos dia, um desses sábios iria cruzar o meu caminho e dizer: “chegou a tua vez”. Esse momento e essa pessoa chegaram, numa bela manhã de Primavera. Mesmo à distância, caro António, você percebeu tudo. O que diz muito de si e da sua capacidade de julgar os outros. Agora que li a sua missiva, devo confessar-lhe que me sinto aliviado. Se calhar de forma inadvertida, o amigo António abriu-me uma janela: a que me permite desabafar aquilo que tentei esconder, dos outros e de mim próprio, durante anos. Já que me dá essa oportunidade, permita-me, então, que confesse tudo.

Sim, é verdade: não passa uma semana sem que a minha filha, de sete anos, admoeste o comportamento infantil que me leva a fazer as mais patética figuras. A reprimenda coincide, quase sempre, com as sextas-feiras e o fim-de-semana. A razão é simples: às sextas sai o Independente; sextas, sábados e domingos tenho o Vasco Pulido Valente; sábado o João Pereira Coutinho e a Helena Matos; domingo o António Barreto. A oferta é farta e conduz ao delírio. Muita cambalhota e muito salto tenho eu dado à conta destes cronistas, que há anos tento seguir e imitar (no estilo e no conteúdo). O espectáculo é de tal forma estapafúrdio, e, em boa verdade, patético, que chega para aborrecer uma criança. Repare: uma criança, ou seja, uma criatura que está habituada ao burlesco, a palhaçadas, cambalhotas e pinotes. Para a minha filha, tornei-me numa espécie de palhaço cabotino – sem piada, previsível e maçador. “Pai, lá estás tu outra vez!”. Uma vergonha, caro António, uma vergonha!

E a coisa tem dado chatices. No ano passado, por exemplo, num voo entre um dos sofás da sala e a chaise longue, a meio de um parágrafo da autoria de Maria Filomena Mónica, fui aterrar com o maxilar inferior na mesa da sala. Resultado: seis pontos no queixo e uma cicatriz para toda a vida. A mente é de tal forma doentia que, de cada vez que a observo (à cicatriz), penso para comigo: são estas as marcas de que um homem se deve orgulhar! A vizinhança, coitada, essa foge de mim como o diabo da cruz. Eu finjo que não os oiço, mas raras são a vezes em que não me chegam aos ouvidos os ecos de um esclarecedor “aí vem o chato do 2.º esquerdo!”. Mas o pior mesmo é a forma como me tornei dependente da minha própria vaidade: o facto de pensar que, ainda que ocasionalmente, algum desses geniais articulistas possa ler as minhas elecubrações, dá-me ensejo e enche-me o ego de forma pornográfica. Esse é, aliás, o meu jackpot onírico: o de um dia saber que fui reconhecido e apreciado por quem venero e sigo canideamente. Por enquanto, contento-me com os milhares de fãs que fui angariando nesta câmara-de-eco (bem posto, o nome).

Tenho consciência do meu problema. Mas tenho uma esperança: a de, com a idade, chegar ao patamar que agora acolhe o caro António, e que me vai permitir concluir, como um dia escreveu Vasco Pulido Valente (está a ver? Não consigo resistir!): tão absurdo que eu era em 2004.

Caramba, António: você topou-me!

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