O MacGuffin

domingo, dezembro 07, 2003

SOBRE O ABORTO
Li há dias n’ O Comprometido Espectador:

“(...) simpatizo com o sofrimento de muitas mulheres que têm uma gravidez indesejada e tentaria minorar ao máximo esse sofrimento. Mas não simpatizo com o sofrimento de outras mulheres. Esta gravidez pode ser a de uma Tia de Cascais que deu uma facada no casamento e tem (chamemos-lhe assim) o “azar” de ficar grávida. Pode ser a de uma qualquer mulher que foi violada. Pode ser a de uma adolescente a quem numa tarde de Verão aconteceu o que aconteceu. Pode ser a de uma mulher do Bairro da Liberdade que já tem 10 filhos e não quer ter 11. Pode ser a de uma mulher de classe média que não quer ter um filho deficiente. Podem ser mil e uma situações. Com umas há razões para simpatizar e ser sensível, com outras (peço desculpa) mas não há.”

Esta é uma questão complexa, eternamente em aberto. É, seguramente, uma questão que conduz à utilização de argumentos contraditórios por parte de quem é contra ou pró-aborto. É, também, uma questão que envolve posições de princípio, facto que irremediavelmente abre a porta a discussões acaloradas e dramáticas. No meu caso, tenho hoje uma posição diferente da que tinha há cinco ou dez anos atrás. Hoje em dia, sou tendencialmente contra a legalização ou descriminalização tout court da interrupção voluntária da gravidez.
Em Inglaterra são efectuados, por ano, cerca de 170.000 abortos. Dos 170.000 casos, desconheço a percentagem dos que envolvem razões que não consigo respeitar ou, como afirma o Luciano Amaral, perante as quais "não sou sensível". Qual a percentagem de mulheres que abortaram porque não queriam ter o filho de um affair extra-conjugal, mesmo detendo capacidade financeira para o criar? Qual a percentagem de abortos que surgiram porque a mulher não queria «estragar» a linha ou a carreira, continuando a desprezar a utilização dos mais elementares métodos anticoncepcionais? Qual a percentagem de abortos que surgiram da jovem de classe média, ou média alta, que decidiu facilitar a coisa com um “tira a camisinha, depois logo se vê”? E, destes exemplos, qual a percentagem dos que foram perpetrados sobre embriões em avançado estado de desenvolvimento? 10, 20, 60 por cento? Não sei. O que sei é que este número é, para mim, evocativo de uma das grandes razões porque encontro reservas quanto à ideia de despenalizar e/ou legalizar (na prática vão dar ao mesmo) o aborto: a ideia da banalização do aborto enquanto método anticoncepcional tardio, a que se ligaria a questão da progressiva desresponsabilização da sociedade perante um problema (a gravidez indesejada) que deveria ser devidamente atacado a montante e não a posteriori.
Ok: do ponto de vista cientifico e formal, e ao contrário do Luciano, dou de barato que, até determinada altura, o embrião possa não ser considerado qualitativamente um «ser humano». Mas, até nessa questão, como ele também refere, a polémica está montada. Subsistem dúvidas na comunidade cientifica quanto ao momento (2, 3 e ½, 4 e ¾ semanas?) a partir do qual se pode afirmar “Alto!: estamos perante uma vida humana com um sistema nervoso central formado e activo”. Partindo do pressuposto de que se chegaria a um consenso mais ou menos alargado quanto ao point of no return (e, atenção, esse momento é, para mim, moral e eticamente decisivo), o que me parece assustador na ideia de se legalizar o aborto, é, por um lado, o risco de banalização (e digo-o mesmo levando em linha de conta o argumento, que eu considero válido, segundo o qual nenhuma mulher gostará de o praticar) e, por outro, o risco de se estar a fazer uma intervenção (para além dos casos já previstos na actual lei, com os quais concordo) que acabe por ceifar a vida a um ser humano já clinicamente formado.
No actual estado das sociedades – que é, a muitos níveis, o estado da desresponsabilização e da glorificação da imaturidade e do facilitismo – legalizar o aborto podia ser mais um sinal do género “Have Fun, amanhã logo se verá”. É razoável pensar-se que, uma vez legalizado, o aborto possa vir a fazer a vez da «pílula do dia seguinte», à falta desta na altura devida ou dos tradicionais métodos anticoncepcionais antes ou durante a relação sexual. O problema que se coloca é este: enquanto que a «pílula do dia seguinte» - sendo já uma solução de recurso perante um problema que, em muitos casos, parte de quem já «brincou» com um assunto sério - actua sobre um ovo (blastocisto) que só muito forçosamente se pode considerar qualitativamente uma vida humana, o aborto pode chegar numa fase em que o embrião atingiu um estádio tal em que só por insensibilidade se lhe pode negar a classificação de “ser humano de pleno direito”.
Dir-me-ão que não, que as coisas não seriam assim. Criar-se-ia, para o efeito, uma malha legal muito apertada, com critérios bem definidos, sob a qual cada caso seria alvo de cuidada avaliação. Mas quem definiria os critérios? E que tipo de critérios? Por exemplo, se o critério fosse a incapacidade financeira do casal ou da mãe para sustentar mais um rebento, como seriam feitos os cálculos: recorrendo à declaração de IRS? O exemplo pode parecer absurdo e demagógico, mas serve para explicar a impossibilidade de se estabelecerem critérios ou regras particulares. Repito: parece-me pacífica a existência de risco de vulgarização de um acto que não pode ser tomado de ânimo leve – mesmo que me digam que não o é – nem encarado como o derradeiro método contraceptivo.
Por último, as questões paralelas. Por exemplo: fixado o prazo a partir do qual legalmente não mais se poderia interromper a gravidez (por razões de ordem ética), e dando de barato que ele seria consensual, quem iria controlar quem? Com que meios? Com que métodos?
Mas esta é apenas a minha modesta opinião.

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