HELENA MATOS!!!
Os Herdeiros
in Público, Sábado, 06 de Dezembro de 2003
"Não sei se por causa do distanciamento inerente ao suporte "on line", se pelo anonimato ou ainda pela informalidade coloquial que caracteriza a linguagem de muitos deles, encontramos nos blogues considerandos que os seus autores dificilmente assinariam num página de jornal ou profeririam numa televisão. É este o caso de um texto assinado por Daniel Oliveira no blogue Barnabé a propósito da participação de Odete Santos numa peça de teatro de revista actualmente em cena no Parque Mayer.
A 21 de Novembro, sob o título "A Louca", Daniel Oliveira, escreveu no blogue Barnabé: "Odete Santos agora é actriz de revista. Parece-me indicado. Entre várias personagens, faz de D. Maria I, a Louca. Uma pessoa que conheço foi vê-la, por mero interesse antropológico (ou será psiquiátrico?)." Tal título, a par duma fotografia, retirada da revista "Visão" em que Odete Santos posa vestida de D. Maria I com a legenda "80 anos para isto", não passaram desapercebidas a muitos daqueles que fazem o mundo dos blogues. Vale a pena ler as respostas de Daniel Oliveira a estes comentários, nomeadamente àqueles que Pacheco Pereira fizera no seu blogue, Abrupto. Daniel Oliveira nega ter escrito o que escreveu "por Odete Santos ser feia ou bonita e ainda menos por ser mulher. Não, não se trata de nada da vida privada de Odete Santos. Odete Santos está a posar para o fotógrafo da revista 'Visão', consciente do que faz. E fá-lo para gáudio do seu partido, o partido de que fiz parte durante quase dez anos, onde nasci e onde se mantém grande parte daqueles que me deram formação política. Goste-se ou não da reserva a que se obrigam os dirigentes do PCP, ela fez parte da formação que recebi. '80 anos para isto' quer dizer isto mesmo: 80 anos de PCP, com altos e baixos, erros tremendos e muitos heróis. 80 anos onde o PCP nunca, até há três anos, usou o desequilíbrio de alguém para somar uns votos e dar um ar 'mais arejado'. (...) O título que lhe acrescentei é o que sinto que estão a fazer a uma herança que também é minha."
Afinal o Barnabé é mesmo diferente dos outros: encontram-se outros blogues igualmente machistas e misóginos, mas o seu egocentrismo é inexcedível. Odete Santos não deve fazer teatro de revista para não destruir a herança de Daniel Oliveira, seja ela qual for. As heranças levam os mais comuns dos mortais a praticar destemperos inomináveis, mas exigir-se a alguém um determinado padrão de comportamento para que a herança de outrem não fique em risco é, sem dúvida, um caso inigualável.
E, sobretudo, deixemo-nos de rodeios, não é verdade que o sexo, a idade e o aspecto físico de Odete Santos sejam alheios às afirmações que sobre ela tece Daniel Oliveira. Basta ler outros comentários inscritos nesse blogue para perceber o imaginário que está subjacente ao paradigma de imagens com que as mulheres aí são mimoseadas: "A ministra [Manuela Ferreira Leite] faz-me lembrar o caseiro que esconde a filha donzela a sete chaves para proteger a sua honra, mas não se importa que a filha do patrão seja uma galdéria, porque é uma rapariga moderna."
Sendo mulher, Odete Santos teria nesta cosmogonia dois tipos de comportamento à escolha para não destruir a herança de Daniel Oliveira e dos seus clones: manter-se no estereótipo da camarada, companheira... testemunha muda dos "erros tremendos e muitos heróis" (no masculino, claro!) do partido, ou então adoptar o género "gauche caviar" tão a gosto do Bloco de Esquerda. Tivesse Odete Santos levado a sua vida parlamentar com o cinzentismo de Heloísa Apolónia e jamais seria referida para o bem ou para mal. Não só não dava cabo da herança de ninguém, como teria direito a que, no dia em que lhe dispensassem os serviços, a considerassem uma extraordinária companheira e outros extraordinários quejandos reservados às mulheres que fazem aquilo que os homens esperam que elas façam. Claro que, se Odete Santos fosse mais nova, se se preocupasse mais com o que aparenta ser do que com aquilo que é, sobretudo se, em vez de ter ido para o Parque Mayer, tivesse escolhido um grupo de teatro independente, preferencialmente um daqueles grupos tão independentes que se independentizaram do público, em vez de destruir a herança de Daniel Oliveira, estaria a bruni-la. E aí ninguém se chocaria com a má qualidade do texto da sua personagem. Antes pelo contrário, só tinha de andar dum lado para o outro sacolejadamente, sentar-se inopinadamente numa das duas cadeiras que, por junto, totalizam os adereços nestas peças, gritar dois ou três palavrões, suspirar uma vez e acabar a cena olhando para o infinito da sala vazia. Tivesse Odete Santos as medidas e a idade adequadas e até poderia nem representar. Bastava-lhe desfilar com a roupa dum qualquer criador para beneficiar desse sacrossanto estado de graça das "bonitas a valer/camaradas nada dogmáticas/intelectuais interessantíssimas".
Veja-se, a este título, a polémica ocorrida em França a propósito da escolha da apresentadora de televisão Evelyne Thomas para busto da República. Quais são as suas qualidades republicanas?, perguntavam os mesmos que nunca se interrogaram sobre as qualidades republicanas doutras mulheres escolhidas anteriormente. Quais seriam, por exemplo, as qualidades republicanas duma das escolhidas anteriormente, Inês de La Fressange? Ser filha de aristocratas e dizer que teve uma educação selvagem na propriedade mais que secular da sua família? Quais seriam as qualidades republicanas de Laetitia Casta? Fazer desfiles de moda? E de Brigitte Bardot? E, pese os seus desempenhos cinematográficos, o que tem Catherine Deneuve a ver com a República? Não tendo nenhuma delas nada que republicanamente as distinga - antes pelo contrário, são beneficiárias desse incensado sangue azul que é a beleza -, porque não foi a sua escolha tão polémica quanto a de Evelyne Thomas, certamente a menos bonita de todas, mas a mais popular?
É óbvio que existem herdeiros à esquerda e à direita, e nada é mais chauvinista e reaccionário do que aqueles momentos em que todos os herdeiros se unem em cruzada. Os herdeiros sentiram-se chocados, em França, com o facto de esta mulher, conhecida por apresentar programas televisivos de grande audiência, ter sido escolhida para representar a República.
Em Portugal, os herdeiros da esquerda, supostamente renegaram a herança, mas, à cautela, querem que as vestais-camaradas zelem pela integridade do seu berço. Quando souberam que Odete Santos representava no palco do Parque Mayer, os herdeiros nem a foram ver. Contam o que lhes contaram e fazem contas de somar e subtrair na suposta herança que têm medo que seja delapidada. Como os filhos pródigos nos romances de Eça, os herdeiros sabem que um dia voltam a casa para pedirem a legítima ao paizinho."
Os Herdeiros
in Público, Sábado, 06 de Dezembro de 2003
"Não sei se por causa do distanciamento inerente ao suporte "on line", se pelo anonimato ou ainda pela informalidade coloquial que caracteriza a linguagem de muitos deles, encontramos nos blogues considerandos que os seus autores dificilmente assinariam num página de jornal ou profeririam numa televisão. É este o caso de um texto assinado por Daniel Oliveira no blogue Barnabé a propósito da participação de Odete Santos numa peça de teatro de revista actualmente em cena no Parque Mayer.
A 21 de Novembro, sob o título "A Louca", Daniel Oliveira, escreveu no blogue Barnabé: "Odete Santos agora é actriz de revista. Parece-me indicado. Entre várias personagens, faz de D. Maria I, a Louca. Uma pessoa que conheço foi vê-la, por mero interesse antropológico (ou será psiquiátrico?)." Tal título, a par duma fotografia, retirada da revista "Visão" em que Odete Santos posa vestida de D. Maria I com a legenda "80 anos para isto", não passaram desapercebidas a muitos daqueles que fazem o mundo dos blogues. Vale a pena ler as respostas de Daniel Oliveira a estes comentários, nomeadamente àqueles que Pacheco Pereira fizera no seu blogue, Abrupto. Daniel Oliveira nega ter escrito o que escreveu "por Odete Santos ser feia ou bonita e ainda menos por ser mulher. Não, não se trata de nada da vida privada de Odete Santos. Odete Santos está a posar para o fotógrafo da revista 'Visão', consciente do que faz. E fá-lo para gáudio do seu partido, o partido de que fiz parte durante quase dez anos, onde nasci e onde se mantém grande parte daqueles que me deram formação política. Goste-se ou não da reserva a que se obrigam os dirigentes do PCP, ela fez parte da formação que recebi. '80 anos para isto' quer dizer isto mesmo: 80 anos de PCP, com altos e baixos, erros tremendos e muitos heróis. 80 anos onde o PCP nunca, até há três anos, usou o desequilíbrio de alguém para somar uns votos e dar um ar 'mais arejado'. (...) O título que lhe acrescentei é o que sinto que estão a fazer a uma herança que também é minha."
Afinal o Barnabé é mesmo diferente dos outros: encontram-se outros blogues igualmente machistas e misóginos, mas o seu egocentrismo é inexcedível. Odete Santos não deve fazer teatro de revista para não destruir a herança de Daniel Oliveira, seja ela qual for. As heranças levam os mais comuns dos mortais a praticar destemperos inomináveis, mas exigir-se a alguém um determinado padrão de comportamento para que a herança de outrem não fique em risco é, sem dúvida, um caso inigualável.
E, sobretudo, deixemo-nos de rodeios, não é verdade que o sexo, a idade e o aspecto físico de Odete Santos sejam alheios às afirmações que sobre ela tece Daniel Oliveira. Basta ler outros comentários inscritos nesse blogue para perceber o imaginário que está subjacente ao paradigma de imagens com que as mulheres aí são mimoseadas: "A ministra [Manuela Ferreira Leite] faz-me lembrar o caseiro que esconde a filha donzela a sete chaves para proteger a sua honra, mas não se importa que a filha do patrão seja uma galdéria, porque é uma rapariga moderna."
Sendo mulher, Odete Santos teria nesta cosmogonia dois tipos de comportamento à escolha para não destruir a herança de Daniel Oliveira e dos seus clones: manter-se no estereótipo da camarada, companheira... testemunha muda dos "erros tremendos e muitos heróis" (no masculino, claro!) do partido, ou então adoptar o género "gauche caviar" tão a gosto do Bloco de Esquerda. Tivesse Odete Santos levado a sua vida parlamentar com o cinzentismo de Heloísa Apolónia e jamais seria referida para o bem ou para mal. Não só não dava cabo da herança de ninguém, como teria direito a que, no dia em que lhe dispensassem os serviços, a considerassem uma extraordinária companheira e outros extraordinários quejandos reservados às mulheres que fazem aquilo que os homens esperam que elas façam. Claro que, se Odete Santos fosse mais nova, se se preocupasse mais com o que aparenta ser do que com aquilo que é, sobretudo se, em vez de ter ido para o Parque Mayer, tivesse escolhido um grupo de teatro independente, preferencialmente um daqueles grupos tão independentes que se independentizaram do público, em vez de destruir a herança de Daniel Oliveira, estaria a bruni-la. E aí ninguém se chocaria com a má qualidade do texto da sua personagem. Antes pelo contrário, só tinha de andar dum lado para o outro sacolejadamente, sentar-se inopinadamente numa das duas cadeiras que, por junto, totalizam os adereços nestas peças, gritar dois ou três palavrões, suspirar uma vez e acabar a cena olhando para o infinito da sala vazia. Tivesse Odete Santos as medidas e a idade adequadas e até poderia nem representar. Bastava-lhe desfilar com a roupa dum qualquer criador para beneficiar desse sacrossanto estado de graça das "bonitas a valer/camaradas nada dogmáticas/intelectuais interessantíssimas".
Veja-se, a este título, a polémica ocorrida em França a propósito da escolha da apresentadora de televisão Evelyne Thomas para busto da República. Quais são as suas qualidades republicanas?, perguntavam os mesmos que nunca se interrogaram sobre as qualidades republicanas doutras mulheres escolhidas anteriormente. Quais seriam, por exemplo, as qualidades republicanas duma das escolhidas anteriormente, Inês de La Fressange? Ser filha de aristocratas e dizer que teve uma educação selvagem na propriedade mais que secular da sua família? Quais seriam as qualidades republicanas de Laetitia Casta? Fazer desfiles de moda? E de Brigitte Bardot? E, pese os seus desempenhos cinematográficos, o que tem Catherine Deneuve a ver com a República? Não tendo nenhuma delas nada que republicanamente as distinga - antes pelo contrário, são beneficiárias desse incensado sangue azul que é a beleza -, porque não foi a sua escolha tão polémica quanto a de Evelyne Thomas, certamente a menos bonita de todas, mas a mais popular?
É óbvio que existem herdeiros à esquerda e à direita, e nada é mais chauvinista e reaccionário do que aqueles momentos em que todos os herdeiros se unem em cruzada. Os herdeiros sentiram-se chocados, em França, com o facto de esta mulher, conhecida por apresentar programas televisivos de grande audiência, ter sido escolhida para representar a República.
Em Portugal, os herdeiros da esquerda, supostamente renegaram a herança, mas, à cautela, querem que as vestais-camaradas zelem pela integridade do seu berço. Quando souberam que Odete Santos representava no palco do Parque Mayer, os herdeiros nem a foram ver. Contam o que lhes contaram e fazem contas de somar e subtrair na suposta herança que têm medo que seja delapidada. Como os filhos pródigos nos romances de Eça, os herdeiros sabem que um dia voltam a casa para pedirem a legítima ao paizinho."
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