O MacGuffin

quinta-feira, dezembro 11, 2003

CORREIO DOS LEITORES
A propósito do meu post sobre a interrupção voluntária da gravidez (vulgo “aborto”), recebi a seguinte missiva de Roberto Merrill:

Juste une remarque pour exprimer ma confusion de voir sur un site qui semble inspiré de la philosophie politique de Berlin, défendre une position, en ce qui concerne le droit à l'avortement, si contraire à la priorité à la liberté négative qu'accorde Berlin sur les autres valeurs.
Bien cordialement,
Roberto


Traduzindo: “Apenas uma nota para exprimir a minha confusão ao ver num site que parece inspirado na filosofia política de Berlin, a defesa de uma posição, no que diz respeito ao direito ao aborto, tão contrária à prioridade da liberdade negativa que Berlim reconhece sobre os outros valores.”

Agradecendo ao Roberto a sua missiva, começo por dizer que reparo, desde logo, em dois pequenos equivocos quanto à interpretação da filosofia política de Sir Isaiah Berlin. O primeiro diz respeito à suposta «prioridade» que Berlin terá concedido à "liberdade negativa". Para Berlin, o problema nunca foi visto como uma questão de «prioridades». Berlin escreveu, mais do que uma vez, que os conceitos de "liberdade negativa" e "liberdade positiva" são complementares e têm de coexistir. Berlin acreditava noutra coisa: que, em nome da perspectiva «positiva» da liberdade, o homem percorreu caminhos que o levaram no sentido contrário ao da Liberdade, ou seja, por caminhos propensos à catástrofe e à barbárie. O segundo, relaciona-se com o facto de os conceitos de “liberdade negativa” e “liberdade positiva” terem sido explicados e desenvolvidos por Berlin num contexto político. Mas, nada melhor do que dar à palavra ao mestre:

“By negativ liberty I meant the absence of obstacles which block human action. Quite apart from obstacles created by the external world, or by the biological, physiological, psychological laws which govern human beings, there is lack of political freedom – the central topic of my lecture – where the obstacles are man-made, whether deliberately or unintentionally. The extent of negative liberty depends on the degree to which I am free to go down this or that path without being prevented from doing so by man-made institutions or disciplines, or by the activities of specific human beings.
It is not enough to say that negative freedom simply means freedom to do what I like, for in that case I can liberate myself from obstacles to the fulfilment of desire simply by following the ancient Stoics and killing desire. But that path, the gradual elimination of the desires to which obstacles can occur, leads in the end to humans being gradually deprived of their natural, living activities: in other words, the most perfectly free human beings will be those who are dead, since then there is no desire and therefore no obstacles. What I had in mind, rather, was simply the number of paths down which a man can walk, whether or not he chooses to do so.” in My Intellectual Path (The Power of Ideas, Pimlico 2001)

A advertência do Roberto ao meu post podia, assim, servir para tudo. Roberto parece sugerir que, sendo o aborto uma decisão de ordem pessoal e privada, a decisão de o levar a cabo seria uma decisão que se encaixaria no conceito de liberdade negativa de Berlin, na medida em que a mesma teria lugar no espaço pessoal e intransmissível da liberdade individual, ou seja, estaria a ser exercido um direito de escolha a que mais ninguém diria respeito, e, com ele, estariam a ser ultrapassados eventuais «obstáculos» (de ordem financeira, social, etc.). Sendo assim, o que impede um ser humano de perpetrar o assassinato do seu vizinho, que o importuna há anos? O que impede um ser humano de cometer um desfalque no banco onde trabalha se, com esse dinheiro, ele poderá ultrapassar as dificuldades financeiras que o atormentam? O que impede um ser humano de fazer explodir a fábrica que anda a fazer descargas de poluentes para o rio? O que impede um ser humano de matar os cães das redondezas, se, com isso, ele poderá finalmente dormir descansado?
O problema é que o conceito Berliniano de "liberdade negativa" pode ser facilmente subvertido se acontecerem uma de duas coisas (ou, pior ainda, as duas coisas ao mesmo tempo): 1.ª) alargar simplisticamente o conceito de liberdade negativa a outros campos; e 2.ª) não levar em consideração questões éticas e/ou de ordem moral que podem e devem balizar o próprio conceito. No caso do aborto, e no meu entender, está colocada em cima da mesa uma questão de ordem ética e moral, uma vez que o acto incide sobre o princípio de uma vida humana. Esse «pequeníssimo» pormenor faz toda a diferença. Pelo menos para mim. Admito que haja quem não vislumbre na questão do aborto um problema ético e moral. Para esses, os conceitos são facilmente transpostos de campo para campo e podem ter aplicação automática. Recuso-me a ir por aí. De resto, a questão do aborto não é para mim, uma questão definitiva. Sou sensível a alguns argumentos pró, embora sinta que sou menos favorável à legalização dessa prática.
Conclusão: não se podem aplicar fria, simplística e «descontextualizadamente» conceitos filosóficos a questões reais e objectivas.

Referências: Four Essays on Liberty, The Power of Ideias

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