O PRAZER DA RELEITURA
Cresci num mundo de abundância. Não, não estou a dizer que fui, ou sou, menino rico. Quem pertence a outras gerações, bem mais velhas, sabe do que falo. Falem com alguém com sessenta, setenta anos, e perguntem-lhe: quantos discos comprava por ano; se adquiria livros e quantos, em média, por mês; quantas vezes ia ao cinema; o que comprava nas superfícies comerciais de então (existiam “superfícies comerciais”?); onde gastava o dinheiro no fim-de-semana; quantos carros circulavam nas estradas e ruas portuguesas; etc. etc. etc.
A minha geração cresceu no auge do consumismo desenfreado. Nos anos 80 começámos a ser impelidos a comprar, da mesma forma, detergentes, iogurtes, revistas, refrigerantes, discos ou livros. O caso dos livros é, aliás, paradigmático. Durante anos, comprei livros de forma compulsiva e mais ou menos indiscriminada. Porque lia as recensões favoráveis, por recomendação de amigos, porque estavam na moda, porque pertenciam a autores (con)sagrados. A abundância era a palavra de ordem. Ainda é. Hoje vendem-se livros nas estações de serviço e nos supermercados, ao lado de papo-secos e rolos de papel higiénico (nalguns casos, a proximidade com estes é coerente). Fenómenos mundiais como os de Harry Potter eram impensáveis, há umas décadas atrás. Em Portugal, a ascensão estonteante da denominada literatura ‘light’ foi também um epifenómeno. Pensando bem, hoje em dia só não escreve um livro quem não quer. Nunca, como agora, se glorificou de forma tão descarada a mediocridade literária, com direito a máquina promocional de encher o olho.
Entendam-me: eu não condeno o fenómeno. It goes with the territory. Ou seja, com a democratização dos hábitos, com o nivelamento dos gostos, com a subida generalizada dos níveis de vida, com a essência da própria cultural popular. Há quem não compreenda nem queira aceitar o fenómeno, que na boca de alguns parece trágico. Eu diria que é um preço incomensuravelmente baixo a pagar. Se um jovem (no sentido nelsoniano) começar a prestar atenção para a existência de um objecto inanimado, de forma paralelepípeda, composto por folhas cheias de caracteres pretos, por culpa da Margarida Rebelo Pinto ou do Paulo Coelho, hey, it’s alright with me.
Embora não me espante o sucesso de vendas destes e doutros escritores, nem, repito, condene ou despreze o facto, ponho-me a pensar quando observo a juventude (novamente no sentido nelsoniano) e muitos trintões ou quarentões com ares de quem deveria ter algum juízo, envergando um sorriso aparvalhado e um olhar turvo, consequência directa do desfrute pró-orgásmico de páginas e páginas de obras de Paulo Coelho, Susanna Tamaro e de tantos outros quejandos. E interrogo-me: será que passámos de um problema de falta de hábitos de leitura, aliado à iliteracia, para um problema de literatice por tudo aquilo que não presta? Que razões levam tanta gente a ler, até à exaustão, livros cuja profundidade literária é idêntica às “Lições do menino Tonecas”? Não sei. Melhor: sei muito bem. Mas não era sobre isso que queria escrever.
Queria escrever sobre o prazer da releitura. Que é o mesmo do que falar sobre economia: de tempo, meios e dinheiro. Nesse aspecto, volto a Nelson Rodrigues (alguma vez o terei deixado?). O Nelson afirmou, por diversas vezes – ele que era um obsessivo – duas coisas tão certas como “estar vivo é o contrário de estar morto”: a primeira, que sendo o tempo amoral, é também a mais perfeita e eficaz máquina na separação do ‘trigo do joio’; a segunda, que tão bom como ler um excelente livro, é reler esse mesmo livro.
Passados estes anos, posso afirmar, com toda a segurança, que a importância maior da literatura na minha formação pessoal, se resume a 20 livros e a uma dúzia de autores. Podem parecer poucos, mas não são. São livros totais, de autores totais. E são, aliás, estes «poucos» livros que me permitiram descobrir o enorme prazer da releitura. Reler uma obra maior, uma, duas, n vezes, é tão ou mais fascinante que a primeira vez. Quero chegar a isto: considero um desperdício perder-se tempo com a mediocridade quando a «nata» e a excelência estão por aí – disponíveis para serem devoradas vezes sem conta. Era só isso que queria dizer. Obrigado.
Cresci num mundo de abundância. Não, não estou a dizer que fui, ou sou, menino rico. Quem pertence a outras gerações, bem mais velhas, sabe do que falo. Falem com alguém com sessenta, setenta anos, e perguntem-lhe: quantos discos comprava por ano; se adquiria livros e quantos, em média, por mês; quantas vezes ia ao cinema; o que comprava nas superfícies comerciais de então (existiam “superfícies comerciais”?); onde gastava o dinheiro no fim-de-semana; quantos carros circulavam nas estradas e ruas portuguesas; etc. etc. etc.
A minha geração cresceu no auge do consumismo desenfreado. Nos anos 80 começámos a ser impelidos a comprar, da mesma forma, detergentes, iogurtes, revistas, refrigerantes, discos ou livros. O caso dos livros é, aliás, paradigmático. Durante anos, comprei livros de forma compulsiva e mais ou menos indiscriminada. Porque lia as recensões favoráveis, por recomendação de amigos, porque estavam na moda, porque pertenciam a autores (con)sagrados. A abundância era a palavra de ordem. Ainda é. Hoje vendem-se livros nas estações de serviço e nos supermercados, ao lado de papo-secos e rolos de papel higiénico (nalguns casos, a proximidade com estes é coerente). Fenómenos mundiais como os de Harry Potter eram impensáveis, há umas décadas atrás. Em Portugal, a ascensão estonteante da denominada literatura ‘light’ foi também um epifenómeno. Pensando bem, hoje em dia só não escreve um livro quem não quer. Nunca, como agora, se glorificou de forma tão descarada a mediocridade literária, com direito a máquina promocional de encher o olho.
Entendam-me: eu não condeno o fenómeno. It goes with the territory. Ou seja, com a democratização dos hábitos, com o nivelamento dos gostos, com a subida generalizada dos níveis de vida, com a essência da própria cultural popular. Há quem não compreenda nem queira aceitar o fenómeno, que na boca de alguns parece trágico. Eu diria que é um preço incomensuravelmente baixo a pagar. Se um jovem (no sentido nelsoniano) começar a prestar atenção para a existência de um objecto inanimado, de forma paralelepípeda, composto por folhas cheias de caracteres pretos, por culpa da Margarida Rebelo Pinto ou do Paulo Coelho, hey, it’s alright with me.
Embora não me espante o sucesso de vendas destes e doutros escritores, nem, repito, condene ou despreze o facto, ponho-me a pensar quando observo a juventude (novamente no sentido nelsoniano) e muitos trintões ou quarentões com ares de quem deveria ter algum juízo, envergando um sorriso aparvalhado e um olhar turvo, consequência directa do desfrute pró-orgásmico de páginas e páginas de obras de Paulo Coelho, Susanna Tamaro e de tantos outros quejandos. E interrogo-me: será que passámos de um problema de falta de hábitos de leitura, aliado à iliteracia, para um problema de literatice por tudo aquilo que não presta? Que razões levam tanta gente a ler, até à exaustão, livros cuja profundidade literária é idêntica às “Lições do menino Tonecas”? Não sei. Melhor: sei muito bem. Mas não era sobre isso que queria escrever.
Queria escrever sobre o prazer da releitura. Que é o mesmo do que falar sobre economia: de tempo, meios e dinheiro. Nesse aspecto, volto a Nelson Rodrigues (alguma vez o terei deixado?). O Nelson afirmou, por diversas vezes – ele que era um obsessivo – duas coisas tão certas como “estar vivo é o contrário de estar morto”: a primeira, que sendo o tempo amoral, é também a mais perfeita e eficaz máquina na separação do ‘trigo do joio’; a segunda, que tão bom como ler um excelente livro, é reler esse mesmo livro.
Passados estes anos, posso afirmar, com toda a segurança, que a importância maior da literatura na minha formação pessoal, se resume a 20 livros e a uma dúzia de autores. Podem parecer poucos, mas não são. São livros totais, de autores totais. E são, aliás, estes «poucos» livros que me permitiram descobrir o enorme prazer da releitura. Reler uma obra maior, uma, duas, n vezes, é tão ou mais fascinante que a primeira vez. Quero chegar a isto: considero um desperdício perder-se tempo com a mediocridade quando a «nata» e a excelência estão por aí – disponíveis para serem devoradas vezes sem conta. Era só isso que queria dizer. Obrigado.
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