WITTGENSTEIN VS. POPPER
Volto a “Wittgenstein’s Poker”. Naquele que foi o seu primeiro livro, David Edmonds e John Eidinow conseguiram fazer uma coisa dificílima, que requer sensibilidade, tacto, conhecimento e humildade: escrever um livro minimamente acessível a leigos e diletantes, mas de uma minúcia e de um rigor histórico-filosóficos intocáveis. E foi escrito com base na tradição hitchcockiana de utilizar um facto pseudo-relevante para, de seguida, contar uma história bem mais vasta e complexa. O ‘MacGuffin’ neste pequeno livro é, precisamente, a história do já mítico incidente com um atiçador acenado, num frente a frente entre dois dos maiores filósofos do Sec. XX, na também famosa sala H3 do edifício Gibbs, no King’s College (a que acolhia regularmente as reuniões do Clube de Ciência Moral de Cambridge). “Wittgenstein’s Poker” é um pequeno-grande épico, que abre portas e janelas a cada parágrafo.
Ao longo de 250 páginas, Edmonds e Eidinow conduzem-nos numa visita absolutamente fascinante pelo espírito de uma época já desaparecida. De uma época onde a paixão das ideias era vital, livre do relativismo ou da incerteza pós-modernista.
Apesar das notórias diferenças de ‘background’ e da latente rivalidade entre ambos, Wittgenstein e Popper pertenciam à grande comunidade judaica da Europa Central. Karl e Ludwig nasceram na Áustria, tendo crescido na que parecia ser uma das mais cosmopolitas cidades europeias: Viena. Contudo, a comunidade judaica austríaca, incluindo os membros perfeitamente assimilados, produto ou não da miscigenação cultural ou sanguínea, nunca deixou de sentir, omnipresente, a incómoda sensação de iminente discriminação, ainda que mais ou menos ténue. Os judeus de Viena dividiam-se em dois grandes grupos: os que se tinham retirado para uma espécie de ‘inner citadel’ cultural e espacial, e os que renunciavam às suas origens, tentando, a todo o custo, a assimilação e aceitação incondicional. Em que campos se situavam Popper e Wittgenstein? Que diferenças separavam estes homens? O que conduziu à sua rivalidade e ao quase confronto físico, numa pequena sala de Cambridge?
Wittgenstein e Popper haviam já sido baptizados (lembram-se da ideia incial de Herzl em baptizar todos os judeus?), embora, no caso dos Popper, essa mudança tivesse acontecido bem mais tarde (pouco tempos antes do seu nascimento). Acresce ainda um facto indelevelmente diferenciador: Ludwig pertencia a uma das mais ricas famílias austríacas (uma família quase aristocráta, mas discreta). Mesmo levando em consideração o facto de Karl Popper ser filho de um respeitável advogado de Viena, as eventuais semelhanças entre estes dois judeus esbarram logo nesse muro intransponível: os Wittgensteins pareciam ser donos de metade de Viena. A sua influencia económica, social e cultural constituía um mundo à parte (Karl, o pai de Ludwig, foi, por exemplo, um mecenas cultural sem paralelo). Estes dois factos – a assimilação mais tardia dos Popper e a diferença de estatuto social – foram preponderantes nos diferentes destinos destes dois grandes homens.
Embora nada fosse certo a partir do momento em que pesada pata de Hitler aterrou em solo austríaco, Wittgenstein e a sua família, através de subterfúgios, influências (os Wittgensteins eram senhores de uma fortuna de valor incalculável, bem ao jeito das ambições do aparelho nazi) e alguma dose de sorte, puderam lutar por um estatuto favorável, à luz da cartilha nazi. Ludwig e os seus irmãos fizeram tudo o que estava ao seu alcance (podiam-no fazer) para fugir à classificação de Mischlinge de primeiro grau – a mais perigosa das classificações para quem não era judeu pur sang. Quem tivesse três avós de origem judia pura, seria considerado judeu; com dois avós, seria ainda rotulado de judeu se o fosse religiosamente ou estivesse casado com judeus puros; havia ainda a categoria de não-arianos – a que suscitaria a já referida classificação (Mischlinge de 1º. grau). Ludwig e os seus irmãos pareciam estar condenados a não deixarem de ser Reichsbürger. Contudo, arranjaram maneira de provar (?) que um dos avós teria sido um bastardo (logo não-puro), almejando o tão desejado, embora ainda incómodo, estatuto de Mischlinge de 2º. Grau. Os Popper não tiveram tal sorte. A maioria teve de recorrer ao exílio forçado (no caso de Karl Popper, um exílio já desejado antes do Anschluss). Em Viena, cerca de dezasseis familiares de Karl acabaram vitimas do holocausto.
De um lado, Karl Popper. Um homem solitário que subira a vida a pulso (a académica e não só). Um homem bom, intelectualmente humilde e honesto. Um filósofo coerente, com um sentido das proporções apurado, empenhado em dar credibilidade à sua disciplina de forma desassombrada. Um homem céptico em relação ao papel da indução, e para quem a ideia da verificação ou da validação de uma qualquer teoria cientifica com um grau positivo de probabilidade seria inexequível. Para Popper, a diferença entre uma ciência e uma não-ciência estava na forma como as teorias (cientificas) permitiam formular previsões testáveis, sendo segura e facilmente abandonáveis caso falhassem nos testes. Popper rejeitou e lutou contra as chamadas pseudo-ciências ou a pseudo-metodologia cientifica que não permitia, por um lado, recusar determinadas teorias empíricas que não tinham sinais de prova observáveis (o caso do Marxismo), ou, por outro, quando uma qualquer teoria cientifica falhava em permitir obter qualquer previsão empírica (o caso, para Popper, da psicanálise). Daí a grande admiração por Einstein e a descrença em Freud. Popper foi, também, um herói na construção de um mundo sujeito ao escrutínio crítico das ideias, contra as pretensões dos planificadores e dos políticos centralistas que achavam possível desenhar uma sociedade de homens a régua e esquadro, com base, por exemplo, num putativo conhecimento mais ou menos cientifico do curso da história.
Do outro lado, Ludwig Wittgenstein. Um génio, em estado puro. Uma figura ‘larger than life’ - carismática e enigmática. Um homem que sugava o espaço à sua volta, onde quer que estivesse. A referência máxima do Circulo de Viena, o ‘clube’ do Positivismo Lógico. O clube que tornara Wittgenstein seu membro honorário e havia recusado a entrada a Popper. O Positivismo Lógico sustentava a aproximação da filosofia à ciência, devendo aquela estar subordinada a esta. Para o Circulo de Viena, e para Wittgenstein, o alvo a abater era o Idealismo alemão, que reservava um papel preponderante à mente e ao espírito, negligenciando a física e a lógica. Para Ludwig e para os seus seguidores, a ética e a metafísica eram lixo. Ludwig Wittgenstein foi um autêntico furacão que marcou, como poucos, a história da filosofia (as áreas da filosofia da linguagem, da lógica e da matemática passaram a ser «dele»). Um filósofo que rejeitava o tradicional, empenhando-se em avançar, desbravar terreno, fugir dos empecilhos idealistas, formalistas, behaviouristas que minavam, segundo ele, a filosofia. Ludwig Wittgenstein foi dono de uma personalidade complexa, aliada a uma mente super dotada (quando Wittgenstein acabou de formular os planos e os desenhos dos radiadores de parede da casa da irmã, não havia nenhum artesão em Viena que conseguisse estar à altura do projecto...). Um homem contraditório quanto ao seu estatuto e ao seu passado. Wittgenstein chegou a escrever verdadeiros manifestos anti-semitas, defendendo a ideia de que o ‘problema judeu’ não exista senão na cabeça dos judeus, sendo apenas fruto da atitude de auto-vitimização e de auto-exclusão, e na incapacidade de conseguirem deixar de se olhar como uma anormalidade. Ao mesmo tempo, confessava a amigos que considerava ser um homem com pensamentos “100 por cento hebraicos”, entre outras declarações contraditórias. (Tanto Wittgenstein como Popper tinham uma ideia nacionalista quanto ao destino da sua Áustria. Uma Áustria unificada, com as diferentes culturas devidamente assimiladas. Mas Wittgenstein foi sempre mais radical do que Popper na castração do sentimento e do ethos judeu.) Um filósofo incoerente mas revelador de uma inteligência que lhe permitiu a adaptação e a mudança (houve um Wittgesntein I do Tratatus e um Wittgenstein II das Philosophical Investigations).
Em confronto na sala H3 estiveram dois homens com pontos de contacto notórios, mas com vidas distintas e com uma ideia do mundo completamente diferente. A magia deste livro está aí: permitir que sejamos, por momentos, espectadores privilegiados do percurso de dois homens, num fascinante palco político, social e filosófico. Numa Europa que fervilhava de drama, emoção e de vida.
Volto a “Wittgenstein’s Poker”. Naquele que foi o seu primeiro livro, David Edmonds e John Eidinow conseguiram fazer uma coisa dificílima, que requer sensibilidade, tacto, conhecimento e humildade: escrever um livro minimamente acessível a leigos e diletantes, mas de uma minúcia e de um rigor histórico-filosóficos intocáveis. E foi escrito com base na tradição hitchcockiana de utilizar um facto pseudo-relevante para, de seguida, contar uma história bem mais vasta e complexa. O ‘MacGuffin’ neste pequeno livro é, precisamente, a história do já mítico incidente com um atiçador acenado, num frente a frente entre dois dos maiores filósofos do Sec. XX, na também famosa sala H3 do edifício Gibbs, no King’s College (a que acolhia regularmente as reuniões do Clube de Ciência Moral de Cambridge). “Wittgenstein’s Poker” é um pequeno-grande épico, que abre portas e janelas a cada parágrafo.
Ao longo de 250 páginas, Edmonds e Eidinow conduzem-nos numa visita absolutamente fascinante pelo espírito de uma época já desaparecida. De uma época onde a paixão das ideias era vital, livre do relativismo ou da incerteza pós-modernista.
Apesar das notórias diferenças de ‘background’ e da latente rivalidade entre ambos, Wittgenstein e Popper pertenciam à grande comunidade judaica da Europa Central. Karl e Ludwig nasceram na Áustria, tendo crescido na que parecia ser uma das mais cosmopolitas cidades europeias: Viena. Contudo, a comunidade judaica austríaca, incluindo os membros perfeitamente assimilados, produto ou não da miscigenação cultural ou sanguínea, nunca deixou de sentir, omnipresente, a incómoda sensação de iminente discriminação, ainda que mais ou menos ténue. Os judeus de Viena dividiam-se em dois grandes grupos: os que se tinham retirado para uma espécie de ‘inner citadel’ cultural e espacial, e os que renunciavam às suas origens, tentando, a todo o custo, a assimilação e aceitação incondicional. Em que campos se situavam Popper e Wittgenstein? Que diferenças separavam estes homens? O que conduziu à sua rivalidade e ao quase confronto físico, numa pequena sala de Cambridge?
Wittgenstein e Popper haviam já sido baptizados (lembram-se da ideia incial de Herzl em baptizar todos os judeus?), embora, no caso dos Popper, essa mudança tivesse acontecido bem mais tarde (pouco tempos antes do seu nascimento). Acresce ainda um facto indelevelmente diferenciador: Ludwig pertencia a uma das mais ricas famílias austríacas (uma família quase aristocráta, mas discreta). Mesmo levando em consideração o facto de Karl Popper ser filho de um respeitável advogado de Viena, as eventuais semelhanças entre estes dois judeus esbarram logo nesse muro intransponível: os Wittgensteins pareciam ser donos de metade de Viena. A sua influencia económica, social e cultural constituía um mundo à parte (Karl, o pai de Ludwig, foi, por exemplo, um mecenas cultural sem paralelo). Estes dois factos – a assimilação mais tardia dos Popper e a diferença de estatuto social – foram preponderantes nos diferentes destinos destes dois grandes homens.
Embora nada fosse certo a partir do momento em que pesada pata de Hitler aterrou em solo austríaco, Wittgenstein e a sua família, através de subterfúgios, influências (os Wittgensteins eram senhores de uma fortuna de valor incalculável, bem ao jeito das ambições do aparelho nazi) e alguma dose de sorte, puderam lutar por um estatuto favorável, à luz da cartilha nazi. Ludwig e os seus irmãos fizeram tudo o que estava ao seu alcance (podiam-no fazer) para fugir à classificação de Mischlinge de primeiro grau – a mais perigosa das classificações para quem não era judeu pur sang. Quem tivesse três avós de origem judia pura, seria considerado judeu; com dois avós, seria ainda rotulado de judeu se o fosse religiosamente ou estivesse casado com judeus puros; havia ainda a categoria de não-arianos – a que suscitaria a já referida classificação (Mischlinge de 1º. grau). Ludwig e os seus irmãos pareciam estar condenados a não deixarem de ser Reichsbürger. Contudo, arranjaram maneira de provar (?) que um dos avós teria sido um bastardo (logo não-puro), almejando o tão desejado, embora ainda incómodo, estatuto de Mischlinge de 2º. Grau. Os Popper não tiveram tal sorte. A maioria teve de recorrer ao exílio forçado (no caso de Karl Popper, um exílio já desejado antes do Anschluss). Em Viena, cerca de dezasseis familiares de Karl acabaram vitimas do holocausto.
De um lado, Karl Popper. Um homem solitário que subira a vida a pulso (a académica e não só). Um homem bom, intelectualmente humilde e honesto. Um filósofo coerente, com um sentido das proporções apurado, empenhado em dar credibilidade à sua disciplina de forma desassombrada. Um homem céptico em relação ao papel da indução, e para quem a ideia da verificação ou da validação de uma qualquer teoria cientifica com um grau positivo de probabilidade seria inexequível. Para Popper, a diferença entre uma ciência e uma não-ciência estava na forma como as teorias (cientificas) permitiam formular previsões testáveis, sendo segura e facilmente abandonáveis caso falhassem nos testes. Popper rejeitou e lutou contra as chamadas pseudo-ciências ou a pseudo-metodologia cientifica que não permitia, por um lado, recusar determinadas teorias empíricas que não tinham sinais de prova observáveis (o caso do Marxismo), ou, por outro, quando uma qualquer teoria cientifica falhava em permitir obter qualquer previsão empírica (o caso, para Popper, da psicanálise). Daí a grande admiração por Einstein e a descrença em Freud. Popper foi, também, um herói na construção de um mundo sujeito ao escrutínio crítico das ideias, contra as pretensões dos planificadores e dos políticos centralistas que achavam possível desenhar uma sociedade de homens a régua e esquadro, com base, por exemplo, num putativo conhecimento mais ou menos cientifico do curso da história.
Do outro lado, Ludwig Wittgenstein. Um génio, em estado puro. Uma figura ‘larger than life’ - carismática e enigmática. Um homem que sugava o espaço à sua volta, onde quer que estivesse. A referência máxima do Circulo de Viena, o ‘clube’ do Positivismo Lógico. O clube que tornara Wittgenstein seu membro honorário e havia recusado a entrada a Popper. O Positivismo Lógico sustentava a aproximação da filosofia à ciência, devendo aquela estar subordinada a esta. Para o Circulo de Viena, e para Wittgenstein, o alvo a abater era o Idealismo alemão, que reservava um papel preponderante à mente e ao espírito, negligenciando a física e a lógica. Para Ludwig e para os seus seguidores, a ética e a metafísica eram lixo. Ludwig Wittgenstein foi um autêntico furacão que marcou, como poucos, a história da filosofia (as áreas da filosofia da linguagem, da lógica e da matemática passaram a ser «dele»). Um filósofo que rejeitava o tradicional, empenhando-se em avançar, desbravar terreno, fugir dos empecilhos idealistas, formalistas, behaviouristas que minavam, segundo ele, a filosofia. Ludwig Wittgenstein foi dono de uma personalidade complexa, aliada a uma mente super dotada (quando Wittgenstein acabou de formular os planos e os desenhos dos radiadores de parede da casa da irmã, não havia nenhum artesão em Viena que conseguisse estar à altura do projecto...). Um homem contraditório quanto ao seu estatuto e ao seu passado. Wittgenstein chegou a escrever verdadeiros manifestos anti-semitas, defendendo a ideia de que o ‘problema judeu’ não exista senão na cabeça dos judeus, sendo apenas fruto da atitude de auto-vitimização e de auto-exclusão, e na incapacidade de conseguirem deixar de se olhar como uma anormalidade. Ao mesmo tempo, confessava a amigos que considerava ser um homem com pensamentos “100 por cento hebraicos”, entre outras declarações contraditórias. (Tanto Wittgenstein como Popper tinham uma ideia nacionalista quanto ao destino da sua Áustria. Uma Áustria unificada, com as diferentes culturas devidamente assimiladas. Mas Wittgenstein foi sempre mais radical do que Popper na castração do sentimento e do ethos judeu.) Um filósofo incoerente mas revelador de uma inteligência que lhe permitiu a adaptação e a mudança (houve um Wittgesntein I do Tratatus e um Wittgenstein II das Philosophical Investigations).
Em confronto na sala H3 estiveram dois homens com pontos de contacto notórios, mas com vidas distintas e com uma ideia do mundo completamente diferente. A magia deste livro está aí: permitir que sejamos, por momentos, espectadores privilegiados do percurso de dois homens, num fascinante palco político, social e filosófico. Numa Europa que fervilhava de drama, emoção e de vida.
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