O MacGuffin

terça-feira, julho 15, 2003

VASCO. SEMPRE.

“PORTUGAL NUNCA EXISTIU
Há quem diga que não percebe a estranha distinção entre Estado e sociedade civil, nem entende muito bem o que se pretende designar quando se fala de enfraquecimento da sociedade civil. Mas uma pessoa, que todas as semanas tem de escrever três páginas dactilografadas sobre, ou a propósito, do que se vai passando no País, está constantemente posta perante um sintoma acabrunhador desse misterioso distúrbio.
É que, para o chamados órgãos de comunicação social e, portanto, para a opinião pública, em Portugal, só existe e só sucede política. Os jornais, por exemplo, são de uma leitura deprimente. Absortos no submundo que começa em S. Bento e acaba em Belém, através da rua António Serpa, da rua da Emenda, da rua de Buenos Aires e do largo do Caldas, ignoram com uma militância obstinada e convicta que, cá fora, há gente que continua a viver, a trabalhar, eventualmente a amar, e regularmente a morrer.
Semana após terrível semana, servem-se análises eruditas das voltas e reviravoltas do poder, profecias, informações confidenciais (quase sempre falsas ou erradas) sobre o que se prepara para o dia seguinte, entrevistas com dirigentes partidários ou antipartidários, boatos, calúnias e ameaças. O que surpreende é que apareça ainda quem compre esta sufocante dieta.
Nos últimos tempos, apenas dois casos não propriamente políticos atraíram a atenção nacional: o «escândalo» de «Os Anos do Século» e o «escândalo» de «As horas de Maria». Mesmo esses, contudo, provinham da tentativa de envolver a Igreja Católica na política e não provocaram uma discussão sobre respectivamente a nossa história moderna e o papel da religião, no singular País que hoje desgraçadamente temos, mas (com duas ou três excepções) simples objuratórias acusações e demagogia avulsa.
À medida que aumenta o número de candidatos a governá-la, cada vez se sabe menos sobre a sociedade portuguesa. O que é que efectivamente acontece, depois da tão gloriosa revolução de Abril, nas irreformadas aldeias do Minho e nas reformadas aldeias do Alentejo: mudaram as relações de produção, ruíram as antigas hierarquias sociais? E por que outras hierarquias foram substituídas? E qual é também a situação nas fábricas, grandes e pequenas, prósperas e falidas, geridas pelo patrão ou autogeridas? Estão as nossas escolas a combater a desigualdade ou a promovê-la? O que se passa lá dentro? Que ideias se tentam meter na cabeça das crianças e dos adolescentes e que ideias, na realidade, se metem? Que pensam desta curiosa democracia os jovens adultos (empregados e desempregados), o que querem, para onde vão?
E, além disto, que já é muito, sendo um pequeno resumo, coisas se possível mais básicas. Em que consiste, em concreto, o catolicismo em Portugal: quem assiste à missa, quem se confessa, quem participa na vida institucional da Igreja? E a família? Que a faz e quem a desfaz? Divorciamo-nos mais ou menos? Temos mais ou menos filhos? Por que valores morais nos determinamos em Moura e Penafiel, em Lisboa e em Vilar Formoso, nas classes trabalhadoras e nas «classes médias»? Em suma, quem somos nós, os portugueses, vários, contraditórios, transformáveis e transformado-se? Porque é com certeza óbvio que não somos, esse «povo», essa «nação», o ente etéreo e ambíguo que os tão dedicados políticos da República tão lestamente invocam, para se revestir de uma vaporosa autoridade e prometerem maravilhas, com o doce sossego de quem não precisa de prestar contas.
Pior ainda, Portugal, que não se conhece e ninguém conhece, podia talvez manifestar-se na elevisão, no teatro, no cinema, na poesia, no romance. A televisão, porém, é uma fonte de verborreia inextinguível, que nos exprime tanto como o dicionário Torrinha. O teatro, tirando a Cornucópia (segundo me contam), tornou-se, pelo que tenho visto, numa ressurreição em pobre e pedestre dos anos quarenta, quando Amélia Rey Colaço andava distraída.
A revista optou pelo comício nazi, e o «boulevard» pela inanidade lírica. Quanto ao cinema, discutido, subsidiado, objecto de guerras, arranhões e insultos, encontra-se definitivamente reduzido a um prazer solitário para iniciados, cheio de rabinhos, truques, insinuações e referências cultas, que dura três semanas numa sala pequena e logo se some sem ruído na justa obscuridade donde veio. Há cinema, porque meia dúzia de extravagantes persistem em considerar-se cineastas. A poesia, como sempre, rufa o tambor e tange a harpa, mas enquanto esperamos por outro Sena, ficámos só com os bibelots de vacuidade sonoro dos vates PS e congéneres. E, por fim, a prosa deu-nos um romance palavroso, passadista e pueril, «O que diz Molero», e pouco mais de consequência.
Que escrever, pois, senão de política, o imaginário do imaginário? Se se levanta outro espelho sobre o país civil, as ciências sociais, a arte, a filosofia, nada se reflecte ou reflectem-se sombras turvas e incompreensíveis. Os espelhos não prestam ou é Portugal, que apesar de alguma velha evidência em contrário, nunca existiu? Há mesmo um país, ou estamos todos a ser colectivamente sonhados pelo general Eanes, o dr. Soares, o dr. Sá Carneiro e o eng. Amaro da Costa?”

Vasco Pulido Valente
in Expresso, 5-5-1979

O artigo foi retirado da colectânea de crónicas e artigos de Vasco Pulido Valente “O Pais das Maravilhas” (edição Intervenção, 1979). É, sem dúvida, um texto datado. Mas, como é habitual no Vasco Pulido Valente, põe-nos a pensar. Graças a ele, ando há dias entretido com esta inquietante pergunta: Portugal (já) existe?

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