Tudo como Dante
Carla Hilário Quevedo, no jornal i:
"Os portugueses adoram regressos. Voltar a ver uma personagem que desapareceu da vida pública desperta no mínimo curiosidade. No caso de José Sócrates, a curiosidade vem acompanhada ou de um ódio visceral ou de uma admiração infantil. Por mim, que faço os possíveis por não endeusar nem animalizar pessoas, vi o regresso de Sócrates com um certo esforço. Noventa minutos de entrevista foi demasiado, mesmo para um ex-primeiro-ministro que interrompia dois anos de silêncio. Isto sobretudo porque o que veio dizer não difere nada no seu conteúdo do que disse durante os seis anos que esteve no poder. Sócrates pode ter estado a estudar em Paris, mas o estudo não mudou nada de substancial. É certo que afinal não foi estudar Filosofia, mas ainda assim tinha uma vaga esperança de encontrar uma pessoa diferente. Fica mais uma vez confirmado que a leitura e o estudo só mudam quem de alguma maneira pode ser mudado.
O desprezo evidente pelos jornalistas que o entrevistaram é o mesmo que sempre vimos. O seu ataque ao "Correio da Manhã" faz lembrar outros ataques similares. Tudo como Dante. Sócrates veio "tomar a palavra" e veio, sobretudo, apresentar a sua "narrativa". Ora intervir no espaço público manipulando e contando histórias é fazer política. Nada de diferente, atenção, do que fazem rigorosamente todos os políticos-comentadores, uma acumulação de funções tão nobre quanto a de actor-modelo. Todos fazem política, uns em horário nobre, outros com tempo de antena mais reduzido. Sócrates fá-lo-á sem ser remunerado, por isso, o que, num momento em que o trabalho se confunde perigosamente com uma espécie de favor, faz mais mal que bem à sociedade portuguesa. Não sei como será Sócrates agora como comentador, mas temo que infecte os assuntos com o seu temperamento irado e narcísico e acabe sempre a falar dele, de como é vítima das "narrativas" alheias, etc.
Sócrates aparece num momento especialmente delicado da vida do país, o que me faz pensar que os receios de que aparecesse um demagogo autoritário possam vir a ser confirmados. Quando Sócrates diz que é preciso parar urgentemente com a austeridade, está a ir ao encontro da vontade de milhões de pessoas e a falar directamente ao seu desespero. A população está massacrada, fragilizada, sem recursos nem esperança de recuperação e aparece um ex-governante a lançar uma frase destas. A má notícia é haver quem acredite que a austeridade pode acabar em breve. Isto é perigoso. A notícia divertida é Sócrates poder tranquilamente ocupar à esquerda o lugar ambicionado pelos movimentos radicais de indignados, Que Se Lixe a Troika, etc. O espaço foi aberto pelas circunstâncias, pelas quais Sócrates também é responsável, e pela desistência da política por parte do governo. Sócrates vem ocupá-lo.
O panorama televisivo do comentário político fica equilibrado, com Sócrates na RTP, Rebelo de Sousa na TVI e Mendes na SIC. Mas enquanto não mudarem o formato do Jornal da Noite de sábado, que se arrasta uma hora e meia até se chegar a Marques Mendes, serei apenas espectadora dos dois primeiros."
1 Comentários:
"O seu ataque ao "Correio da Manhã" faz lembrar outros ataques similares"
Durante muito tempo Socrates era o alvo preferido do execrável CM. Valia tudo para denegrir pessoalmente e politicamente a figura.
Por isso o ataque de Socrates ao CM é merecido e curto, mesmo curto.
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