O MacGuffin: Esquerda, direita, volver

quarta-feira, junho 10, 2009

Esquerda, direita, volver

Já havia escrito sobre o assunto. Aqui. Numa altura em que a tese da morte da dicotomia esquerda-direita volta a estar ao rubro, Rui Ramos escreveu um excelente artigo sobre o tema.


Rui Ramos in i (30/05/2009)

Isto de não ser de esquerda

Cresci num país "a caminho do socialismo". O governo era de esquerda, os meus pais eram de esquerda, os professores no liceu eram de esquerda, os jornais eram de esquerda, os cantores da moda eram de esquerda, os militares eram de esquerda, os bispos eram de esquerda e até os partidos ditos de "direita" também eram de esquerda (do "centro-esquerda"). Aqueles que viveram nesse Portugal de há trinta anos sabem do que falo. O ar cheirava a esquerda e parece-me que até a comida sabia a esquerda. A sabedoria, o talento e a bondade só podiam ser de esquerda. A esquerda era o bem. Ser de esquerda era estar salvo, redimido de todos os pecados, isento de todas as dúvidas, dispensado de todas as reflexões. O respeitinho era de esquerda. Num país assim, era talvez fatal que a perversidade inerente à adolescência me levasse a acreditar que nada do que me fascinava pudesse ser de esquerda. Henry James, Borges, Nabokov não eram de esquerda. Os Estados Unidos não eram de esquerda. A rapariga mais bonita do liceu também não era, aparentemente, de esquerda.

O que era não ser de esquerda?
Era ler os poemas de Fernando Pessoa sem os reduzir à "expressão da angústia de classe da burguesia". Era reconhecer que o Natal não era quando um homem quisesse ou que o mundo não pulava e avançava como bola colorida nas mãos de uma criança. Era chamar as coisas pelos nomes e perceber os limites de tudo. Era aceitar o pluralismo e a contradição como características permanentes da humanidade, e não como imperfeições para serem passadas a ferro pela planificação científica da sociedade. Não ser de esquerda era compreender que Cuba era uma ditadura, ponto final.

Onde tudo começou
Eis como fui parar à direita - um lado que, depois da revolução, era como aqueles descampados entre prédios onde brincávamos em miúdos: um espaço vago, sem organizações, sem hierarquias, sem rituais, sem dogmas, sem líderes. Foi por aí que passei a andar, anarquicamente. Se tivesse nascido noutra época, estaria eu noutro lado? Talvez. O ano passado, li um texto em que Bernard Henri-Lévy justificava as suas parcialidades políticas. Descobri, sem espanto, que as razões pelas quais ele diz que é de esquerda são precisamente as mesmas pelas quais eu digo que não sou de esquerda, ou, se preferirem, pelas quais eu estou à direita (não digo "ser de direita", porque esse é um ponto de vista da esquerda). Resumo: ele fez-se de esquerda para ser livre; eu fui para a direita pela mesma razão. Os caminhos da liberdade são muitos e misteriosos. Mas talvez só à direita se possa perceber isso.

1 Comentários:

Blogger Helena Sacadura Cabral disse...

Só hoje li este texto. Primoroso. Fiquei a compreender melhor porque tenho dois filhos - um de esquerda e outro de direita - tão iguais e tão diferentes!

8:19 da tarde  

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