Uma questão de vida e de morte
No dia 14 de Outubro de 1996 remeti uma carta para o semanário O Independente, dirigida a João Bénard da Costa. Lembro-me de ter levado mais de uma semana a escrevê-la. O resultado final não foi bom. Foi mau. Para terem uma ideia, começava assim: “Escrevo-lhe esta carta perante a inevitabilidade de querer saber mais sobre esta paixão que me acompanha desde pequeno, a que deram o nome de cinema.” Uma coisa verdadeiramente medonha. Mas era de esperar. Escrever uma carta ao João Bénard da Costa só poderia dar naquilo: um monte de baboseiras próprias de um imberbe que, nervosamente, se dirigia ao seu mestre. Porque foi isso que, à distância, aquele homem representou para um provinciano como eu: um verdadeiro sage.
Cresci para o cinema numa altura em que a Cinemateca era um lugar longínquo, quase mítico. O melhor cinema, dada a distância, passava na televisão, sobretudo na RTP2, ou era sinónimo de contrabando: havia sempre quem arranjasse forma de apanhar uma gravação mais ou menos manhosa em VHS de um Ray, de um Preminger ou de um Capra, regra geral porque tinha um amigo em Lisboa que se «movimentava» no milieu. A cassete era, depois, reproduzida em condições mínimas por três ou quatro lares, e em condições de quase invisibilidade total pelos restantes. A aprendizagem fazia-se ao acaso. Ford e Hitchcock eram a referência. Não havia «orientação» ou «cartilha». Aliás, nem interessava que houvesse. Era a idade da petulância acneica, de quem depois de ver dois ou três Langs de seguida se achava prontinho para dar lições de mise-en-scène.
Um dia, comecei a ler o João Bénard da Costa. Não lembro exactamente o quê, nem quando. Mas sei que o «encontro» foi tal como o descrito por Thelma Ritter (que ele adorava) ao Jimmy Stewart, no Rear Window: "Together – wham! – like a coupla of taxis on Broadway". Um estrondo que me ligou para sempre ao João Bénard da Costa. Daí em diante, passei a vasculhar tudo o que ele escrevia, as entrevistas que dava, as notícias sobre ele e a sua Cinemateca.
Com o João Bénard da Costa, qualquer pessoa aprendia qualquer coisa sobre cinema, por muito pouco que se esforçasse. Esforçado ou não, com ele aprendi muito. Aprendi tudo. Era fácil: uma mera passagem pelas suas crónicas, artigos ou recensões bastava para nos darmos conta de que estávamos na presença de um homem verdadeiramente apaixonado, com o dom raro de arrastar os outros nas suas viagens pelo interior dos filmes com o intuíto de angariar cumplices mesmo que o tom fosse o de uma conversa com o próprio. E nós deixávamo-nos arrastar, seguros de que estávamos a ser guiados por um erudito generoso. Não estarei a exagerar se disser que a minha personalidade cinéfila foi formatada à imagem do que ele indicava, apontava, dizia, aconselhava ou desaconselhava. No início, achava piada ao facto de pensar que o que ele escrevia sobre determinado filme, tinha sido o mesmo que eu tinha pensado ou vivido. No caso dos Hitchcock, que eu tinha descoberto bem antes de o começar a ler, as coincidências só «agravaram» a dependência. Mas cedo percebi que já tudo se encontrava baralhado: era já eu que via os filmes à «maneira» do João Bénard da Costa (da mesma forma que era à maneira do Vasco Pulido Valente que escrevia ou lia sobre política e história, ou à maneira do Miguel Esteves Cardoso que lia ou escrevia sobre os portugueses, música, etc. etc.). Fazia, aliás, questão.
Para quem nasceu e viveu toda a vida na província, longe dos happenings cinematográficos, os textos do João Bénard da Costa foram uma imensa janela para um admirável mundo. E, no meu caso, um admirável mundo «velho». Devo-lhe a ele, e só a ele, o facto de ter tido o privilégio de perder (neste caso ganhar) horas e horas a ver Premingers, Langs, Fords, Rays, Capras, Powells, Welles, Renoirs, Dreyers, Hitchcocks etc. etc., exercício que terá constituído aquilo que eu gosto de chamar de «educação clássica», por contraponto às deambulações e devaneios que os meus amigos encetavam por entre a modernidade dos «efeitos especiais» ou a pós-modernidade dos temas «fracturantes» - provavelmente, a única vantagem que tenho sobre as gerações que se seguiram à minha, regra geral perfeitamente analfabetas relativamente a tudo o que foi feito antes dos anos 70.
Lembro-me de uma entrevista que ele deu à Maria João Seixas, salvo erro na RTP2, em que à mínima referência aos filmes da sua vida (que eram centenas, como ele dizia) o sorriso do João Bénard da Costa abria-se de uma forma absolutamente contagiante, como se lhe tivessem acabado de dar o supremo prazer de falar sobre os grandes amores da sua vida. Os olhos brilhavam como raramente se conseguia, e consegue, ver em televisão. Era, ao mesmo tempo, um sorriso comovente de tão inocente. Era como se, à mínima menção ao Johnny Guitar, o seu sangue começasse a fervilhar, embora sempre sob uma capa de absoluto gentlemanship, que ele nunca por nunca perdeu.
No dia 14 de Outubro de 1996 escrevi-lhe, então, uma carta. Há anos que era assombrado por um filme do qual não sabia nem o título, nem o realizador, nem o nome dos actores, mas do qual jamais me tinha esquecido. Não me lembrava em que condições o tinha visto, mas sei que tinha sido há muitos anos atrás. Por circunstâncias que nunca soube explicar, e apesar de ter feito um esforço nesse sentido, nunca encontrei referências ao filme nos jornais ou revistas que tinham a programação do dia ou da semana. Com o passar dos anos, cheguei mesmo a pensar que tinha sido fruto da minha imaginação. Lembrava-me vagamente da história (ou de parte da história). Um piloto que, durante a 2.ª Guerra Mundial, tinha inexplicavelmente sobrevivido a um acidente aéreo quando era suposto, segundo registo ou cadastro celestial, ter morrido. As cenas passadas no céu, naquilo que parecia ser um lugar asséptico, meticulosamente organizado, cheio de funcionários que recebiam as almas e controlavam as baixas já programadas por decreto emanadas do mais que tudo, eram filmadas a preto e branco. Na Terra, o filme decorria em Technicolor. Lá em cima, reclamavam o aviador, alegando tratar-se de um engano. Mandaram um mensageiro à Terra, para que este tratasse do assunto. Um Conducter. Só que tinha surgido um problema: o jovem aviador tinha-se, entretanto, apaixonado. Falando com o mensageiro, o aviador recusava-se a morrer. Lembrava-me que, a certa altura, no filme, surgia um tribunal celestial onde se julgaria a sua sorte. Um tribunal com advogado de defesa, de acusação, jurados, testemunhas. Os figurantes desse tribunal eram, na verdade, personagens que, na Terra, rodeavam a vida do aviador. A defesa alegava que o réu não deveria morrer porque estava apaixonado. A acusação alegava que não podia haver excepções, que o que estava escrito era para cumprir e que essa coisa do «apaixonado» não passava de um devaneio fugaz, com resultado nulo ou duvidoso, próprio de quem queria resgatar a doce americana da sua felicidade back home. O problema era o da prova. Neste caso do amor. E a prova surgia sob a forma de uma lágrima.
Passada uma semana, recebi uma carta com o timbre da Cinemateca com um irrepreensível cartão do seu director, avisando-me de que o objecto da minha carta seria tema da próxima crónica n' O Independente. O filme, como foi explicado de forma perfeita na crónica, chamava-se A Matter of Life and Death (1946) e tinha sido realizado por essa imbatível dupla Michael Powell/Emeric Pressburger. É um dos filmes da minha vida, que passei a rever todos os anos.
A semana passada, imaginei-o a subir aquela escada com o seu Conducter. Hoje, sei que nunca, como agora, se passaram tão bons filmes lá em cima. E que o céu ficou bem mais rico. An old acquainted has returned.
Cresci para o cinema numa altura em que a Cinemateca era um lugar longínquo, quase mítico. O melhor cinema, dada a distância, passava na televisão, sobretudo na RTP2, ou era sinónimo de contrabando: havia sempre quem arranjasse forma de apanhar uma gravação mais ou menos manhosa em VHS de um Ray, de um Preminger ou de um Capra, regra geral porque tinha um amigo em Lisboa que se «movimentava» no milieu. A cassete era, depois, reproduzida em condições mínimas por três ou quatro lares, e em condições de quase invisibilidade total pelos restantes. A aprendizagem fazia-se ao acaso. Ford e Hitchcock eram a referência. Não havia «orientação» ou «cartilha». Aliás, nem interessava que houvesse. Era a idade da petulância acneica, de quem depois de ver dois ou três Langs de seguida se achava prontinho para dar lições de mise-en-scène.
Um dia, comecei a ler o João Bénard da Costa. Não lembro exactamente o quê, nem quando. Mas sei que o «encontro» foi tal como o descrito por Thelma Ritter (que ele adorava) ao Jimmy Stewart, no Rear Window: "Together – wham! – like a coupla of taxis on Broadway". Um estrondo que me ligou para sempre ao João Bénard da Costa. Daí em diante, passei a vasculhar tudo o que ele escrevia, as entrevistas que dava, as notícias sobre ele e a sua Cinemateca.
Com o João Bénard da Costa, qualquer pessoa aprendia qualquer coisa sobre cinema, por muito pouco que se esforçasse. Esforçado ou não, com ele aprendi muito. Aprendi tudo. Era fácil: uma mera passagem pelas suas crónicas, artigos ou recensões bastava para nos darmos conta de que estávamos na presença de um homem verdadeiramente apaixonado, com o dom raro de arrastar os outros nas suas viagens pelo interior dos filmes com o intuíto de angariar cumplices mesmo que o tom fosse o de uma conversa com o próprio. E nós deixávamo-nos arrastar, seguros de que estávamos a ser guiados por um erudito generoso. Não estarei a exagerar se disser que a minha personalidade cinéfila foi formatada à imagem do que ele indicava, apontava, dizia, aconselhava ou desaconselhava. No início, achava piada ao facto de pensar que o que ele escrevia sobre determinado filme, tinha sido o mesmo que eu tinha pensado ou vivido. No caso dos Hitchcock, que eu tinha descoberto bem antes de o começar a ler, as coincidências só «agravaram» a dependência. Mas cedo percebi que já tudo se encontrava baralhado: era já eu que via os filmes à «maneira» do João Bénard da Costa (da mesma forma que era à maneira do Vasco Pulido Valente que escrevia ou lia sobre política e história, ou à maneira do Miguel Esteves Cardoso que lia ou escrevia sobre os portugueses, música, etc. etc.). Fazia, aliás, questão.
Para quem nasceu e viveu toda a vida na província, longe dos happenings cinematográficos, os textos do João Bénard da Costa foram uma imensa janela para um admirável mundo. E, no meu caso, um admirável mundo «velho». Devo-lhe a ele, e só a ele, o facto de ter tido o privilégio de perder (neste caso ganhar) horas e horas a ver Premingers, Langs, Fords, Rays, Capras, Powells, Welles, Renoirs, Dreyers, Hitchcocks etc. etc., exercício que terá constituído aquilo que eu gosto de chamar de «educação clássica», por contraponto às deambulações e devaneios que os meus amigos encetavam por entre a modernidade dos «efeitos especiais» ou a pós-modernidade dos temas «fracturantes» - provavelmente, a única vantagem que tenho sobre as gerações que se seguiram à minha, regra geral perfeitamente analfabetas relativamente a tudo o que foi feito antes dos anos 70.
Lembro-me de uma entrevista que ele deu à Maria João Seixas, salvo erro na RTP2, em que à mínima referência aos filmes da sua vida (que eram centenas, como ele dizia) o sorriso do João Bénard da Costa abria-se de uma forma absolutamente contagiante, como se lhe tivessem acabado de dar o supremo prazer de falar sobre os grandes amores da sua vida. Os olhos brilhavam como raramente se conseguia, e consegue, ver em televisão. Era, ao mesmo tempo, um sorriso comovente de tão inocente. Era como se, à mínima menção ao Johnny Guitar, o seu sangue começasse a fervilhar, embora sempre sob uma capa de absoluto gentlemanship, que ele nunca por nunca perdeu.
No dia 14 de Outubro de 1996 escrevi-lhe, então, uma carta. Há anos que era assombrado por um filme do qual não sabia nem o título, nem o realizador, nem o nome dos actores, mas do qual jamais me tinha esquecido. Não me lembrava em que condições o tinha visto, mas sei que tinha sido há muitos anos atrás. Por circunstâncias que nunca soube explicar, e apesar de ter feito um esforço nesse sentido, nunca encontrei referências ao filme nos jornais ou revistas que tinham a programação do dia ou da semana. Com o passar dos anos, cheguei mesmo a pensar que tinha sido fruto da minha imaginação. Lembrava-me vagamente da história (ou de parte da história). Um piloto que, durante a 2.ª Guerra Mundial, tinha inexplicavelmente sobrevivido a um acidente aéreo quando era suposto, segundo registo ou cadastro celestial, ter morrido. As cenas passadas no céu, naquilo que parecia ser um lugar asséptico, meticulosamente organizado, cheio de funcionários que recebiam as almas e controlavam as baixas já programadas por decreto emanadas do mais que tudo, eram filmadas a preto e branco. Na Terra, o filme decorria em Technicolor. Lá em cima, reclamavam o aviador, alegando tratar-se de um engano. Mandaram um mensageiro à Terra, para que este tratasse do assunto. Um Conducter. Só que tinha surgido um problema: o jovem aviador tinha-se, entretanto, apaixonado. Falando com o mensageiro, o aviador recusava-se a morrer. Lembrava-me que, a certa altura, no filme, surgia um tribunal celestial onde se julgaria a sua sorte. Um tribunal com advogado de defesa, de acusação, jurados, testemunhas. Os figurantes desse tribunal eram, na verdade, personagens que, na Terra, rodeavam a vida do aviador. A defesa alegava que o réu não deveria morrer porque estava apaixonado. A acusação alegava que não podia haver excepções, que o que estava escrito era para cumprir e que essa coisa do «apaixonado» não passava de um devaneio fugaz, com resultado nulo ou duvidoso, próprio de quem queria resgatar a doce americana da sua felicidade back home. O problema era o da prova. Neste caso do amor. E a prova surgia sob a forma de uma lágrima.
Passada uma semana, recebi uma carta com o timbre da Cinemateca com um irrepreensível cartão do seu director, avisando-me de que o objecto da minha carta seria tema da próxima crónica n' O Independente. O filme, como foi explicado de forma perfeita na crónica, chamava-se A Matter of Life and Death (1946) e tinha sido realizado por essa imbatível dupla Michael Powell/Emeric Pressburger. É um dos filmes da minha vida, que passei a rever todos os anos.
A semana passada, imaginei-o a subir aquela escada com o seu Conducter. Hoje, sei que nunca, como agora, se passaram tão bons filmes lá em cima. E que o céu ficou bem mais rico. An old acquainted has returned.
4 Comentários:
Olá MacGuffin !
d'onde vem este MacGuffin, pá?
Muito enternecedor o teu derradeiro testemunho ao João BC... é isso mesmo, estamos todos como "A row of cabs lined at Geraldo’s Square" ah ah ah!
Engraçado eu desconhecer este teu blog, meu caro Carlos do Carmo. O que me lembrou a frase sobre o Portugal desconhecido que espera por si. Com alguma frequência dizemos: "ele não é meu amigo, apenas um conhecido", quando por vezes temos amigos que nos são, no fundo, desconhecidos. Enfim, desde que "eles esperem por nós"...
um abraço
A.B.
Olá, sou eu outra vez. Não te largo agora...
Vi a apresentação do teu filme Matter of... e adorei (adormeci ao fim de três minutos, mas acordei mesmo antes dele saltar do avião) e disse: não pode ter morrido! Ou caíu na água ou foi para o céu! Afinal caíu na lama e não foi para o céu...
Vou fazer um blog que se chamará Muffin. Gostas?
Tens de me emprestar o filme Matter of...
Abraços
A.B.
Caraças, MacGuffin, do que te foste lembrar!
A cena de abertura do "A Matter..." é das coisas mais bonitas que eu eu alguma vez vi :):):)
E tambem aprendi muito com o jonnhy Benard. Aliás, a minha cinefilia, apesar de eu viver na cidade, tem contornos muito parecidos com a tua: RTP, VHSs manhosas, uma coisa meio underground, meio lusco fusco.
Não digo que seja melhor do que é agora. Mas o prazer da descoberta para um puto de 15 ou 16 anos na altura era muito mais intenso do que agora numa epoca em que tudo o que queremos está á distancia de uns clicks e de um cartão de credito :):)
Meu caro “A.B.”
Mesmo desconfiando de que seria alguém de Évora, ou próximo de, a escrever aquilo, o teu “A. B.” não fazia parte do rol de “ABs” suspeitos de terem escrito aqueles comentários. Desde logo porque pensei que conhecesses o meu blogue. Depois, porque a tua pergunta “donde vem este MacGuffin” não batia certo com o teu conhecimento sobre cinema. Caramba, “donde vem este MacGuffin” é pergunta que se faça, pá?
Agora que sei quem é o “A.B.”, aquela referência aos amigos que temos mas que, no fundo, nos são desconhecidos, e aos conhecidos com que nos damos mas que, no fundo, são amigos, já faz sentido. E eu, sou afinal o quê?
Bom, agora que já conheces o blogue, é participar, sff.
Um grande abraço,
Carlos
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