Estou a perder qualidades
A sério. Uma inquietação surda pesa-me na alma. As eventuais qualidades empíricas que, de quando em vez, me permitiam apear do imperscrutável, parecem, de há uns tempos a esta parte, ter-me abandonado. Observo o branco e dizem-me que é preto. Provo o salgado e sai-me o sacarino. Deparo-me com a soberba e afiançam-me tratar-se de humildade. Ouço o insulto gratuito e explicam-me, por «a + b», que não passa de sofisticada contundência. Penso reconhecer o argumento abjecto quando, afinal, garantem os especialistas, é tão só nervo, firmeza ou eficácia. Deparo-me com a mais reles má-fé (haverá outra?) e chovem explicações poderosíssimas de que se trata de argúcia e verve. Parafraseando o good old doctor Johnson (agora em inglês, que isto é uma casa séria), they seem to find me an argument although they are not obliged to find me an understanding.
Vem isto a propósito do debate, de ontem, entre o Prof. Cavaco Silva e do Dr. Mário Soares (de agora em diante 'Cavaco' e 'Soares'). Para além do role de banalidades ditas «normais» ou, se quiserem, e para utilizar a palavra feia, «incontornáveis», a que nenhum candidato à presidência da república portuguesa se pode subtrair (em primeiro lugar, dada a natureza do cargo; em segundo lugar, devido ao modelo de debate adoptado - que põe a nu de forma inaudita a evidência de que, à falta de terreno fértil para a boa da peixeirada, pouco ou nada resta; e, finalmente, face ao nível qualitativo da política à portuguesa) assisti, ontem, a um incrível (no sentido pejorativo) desempenho de Soares, face a uma surpreendente (pela positiva) performance de Cavaco.
É óbvio, repito, que todos os candidatos, sem excepção, têm roçado o banal e acenado com o vago. É óbvio que as parcas e, nalguns casos, escabrosas tentativas de imiscuição em matérias «concretas» e «tangíveis», têm caído no saco do funcionalismo governativo – ao qual, como se sabe, só tem acesso quem para tal tem competências, o que não é o caso de um PR. Tudo isso é óbvio, tudo isso é fado. Mas há diferenças. E, nalguns casos, semelhanças.
Começo pelas semelhanças: estiveram ontem, frente-a-frente, dois candidatos que vestiram – ou vestiram-lhes – a casaca de «homens-providência». Soares bem pode tentar convencer-nos de que o casting para o papel de «salvador da pátria» recaiu, exclusivamente, sobre Cavaco. E que este o tem desempenhado de bom grado e com extrema dedicação. Mas só convencerá ceguinhos ou basbaques. Soares também usou e (mais do que Cavaco) abusou dessa pretensa condição de Deus super omnia, disfarçada aqui e acolá com assomos ad hoc de humildade, sob o manto turvo da já famosa «ética republicana». De resto, tudo diferente.
Cavaco foi um Senhor. Evitou a ofensa, a fulanização, a deselegância. Revelou-se paciente face à «irreverência» (eufemismo para «arrogância») de Soares. Falou dos problemas do país. Indicou caminhos. Falou das novas realidades e do futuro. Esteve bem com a História e não revelou encanitamentos pueris em torno das ideologias. Revelou-se, no fundo, um homem prático, voluntarista, com vontade de ver fazer e de ajudar a fazer. Um homem que pretende «espevitar» as mentalidades e os agentes do país para, lá vem novo cliché, enfrentar os «novos desafios». E àqueles que o acusam de criar falsas expectativas ou de mentir sobre hipotéticas práticas ou decisões que caem fora do âmbito do PR (por manifesta falta de instrumentos legais, formais e materiais), lembro um facto que qualquer criança alcança: indicar caminhos, falar sobre o que deve ser feito, elencar prioridades, dar a sua opinião sobre questões concretas, não é o mesmo que dizer que pretende levá-las a cabo ou chamar a si a responsabilidade de as concretizar. Trata-se de ter ideias para o país. Só, aliás, por má-fé se podem esquecer as dezenas de vezes em que Cavaco se referiu à moderação, ao diálogo e à ajuda que pretende dar ao(s) governo(s) da nação. Nunca, em tempo algum, Cavaco terá insinuado qualquer coisa em contrário, dando provas de que conhece os constrangimentos da função de PR e a forma como a mesma se encontra constitucionalmente balizada para outros voos.
Do outro lado, o «senador». O putativo paizinho da pátria (estatuto que ele pensa justificar quase tudo), esteve sobretudo empenhado, sob a complacência dos (fracos, muito fracos) entrevistadores, em denegrir Cavaco, em aviltar a sua personalidade, em menosprezar as suas evidentes qualidades (que ninguém, de boa-fé, pode sonegar). E tudo isto com base em premonições, sensações e palpites muito particulares (insuperavelmente subjectivos e quase sempre patéticos). Abusando do pronome pessoal, ouvimos de tudo: que ele é «rígido»; que ele não fala; que ele é distante; que ele «não tem formação»; que ele não passa de um «economista razoável» (ser-se economista é anátema, na boca de Soares); que ele é um ignorante em História; que ele não conhece o mundo que o rodeia. O delírio argumentativo, portanto, tendo em conta a «profunda» sagacidade de quem vislumbra, por aí, uma «cidadania mundial»(?), uma «economia global»(?), um «movimento transnacional»(?).
É claro que, em matéria de banalidades, Soares foi surpreendentemente inédito e singular: é pela liberdade, pelo diálogo, pela democracia e pelo pluralismo (assim, vejam bem, sem mais nem menos). E, obviamente, está ao lado dos desfavorecidos. Originalíssimo. Cavaco, como lembrou Soares, para além de pertencer à ímpia Direita (logo «insensível» e «rígido»), está mortinho para desestabilizar tudo e todos. Mortes na rua? Vão ser às milhares. Sim, que esta democracia já não é o que era.
No fim, ainda pensei: “Soares foi arrumado neste pseudo-debate, em que dois entrevistadores manga-de-alpaca foram coadjuvados por um instigador de serviço, cujas armas remeteram para a descortesia e para a retórica de vão-de-escada.” Mas depressa percebi que não. Os plumitivos, logo de seguida, explicaram. Eu, tenho bom remédio: ou aceito as regras do circo – do contorcionismo retórico, do arrazoado mendaz, da perpetuação monástica de estatutos e das eminências pardas – ou arrumo as botas. Seja como for, estou a perder qualidades.
Vem isto a propósito do debate, de ontem, entre o Prof. Cavaco Silva e do Dr. Mário Soares (de agora em diante 'Cavaco' e 'Soares'). Para além do role de banalidades ditas «normais» ou, se quiserem, e para utilizar a palavra feia, «incontornáveis», a que nenhum candidato à presidência da república portuguesa se pode subtrair (em primeiro lugar, dada a natureza do cargo; em segundo lugar, devido ao modelo de debate adoptado - que põe a nu de forma inaudita a evidência de que, à falta de terreno fértil para a boa da peixeirada, pouco ou nada resta; e, finalmente, face ao nível qualitativo da política à portuguesa) assisti, ontem, a um incrível (no sentido pejorativo) desempenho de Soares, face a uma surpreendente (pela positiva) performance de Cavaco.
É óbvio, repito, que todos os candidatos, sem excepção, têm roçado o banal e acenado com o vago. É óbvio que as parcas e, nalguns casos, escabrosas tentativas de imiscuição em matérias «concretas» e «tangíveis», têm caído no saco do funcionalismo governativo – ao qual, como se sabe, só tem acesso quem para tal tem competências, o que não é o caso de um PR. Tudo isso é óbvio, tudo isso é fado. Mas há diferenças. E, nalguns casos, semelhanças.
Começo pelas semelhanças: estiveram ontem, frente-a-frente, dois candidatos que vestiram – ou vestiram-lhes – a casaca de «homens-providência». Soares bem pode tentar convencer-nos de que o casting para o papel de «salvador da pátria» recaiu, exclusivamente, sobre Cavaco. E que este o tem desempenhado de bom grado e com extrema dedicação. Mas só convencerá ceguinhos ou basbaques. Soares também usou e (mais do que Cavaco) abusou dessa pretensa condição de Deus super omnia, disfarçada aqui e acolá com assomos ad hoc de humildade, sob o manto turvo da já famosa «ética republicana». De resto, tudo diferente.
Cavaco foi um Senhor. Evitou a ofensa, a fulanização, a deselegância. Revelou-se paciente face à «irreverência» (eufemismo para «arrogância») de Soares. Falou dos problemas do país. Indicou caminhos. Falou das novas realidades e do futuro. Esteve bem com a História e não revelou encanitamentos pueris em torno das ideologias. Revelou-se, no fundo, um homem prático, voluntarista, com vontade de ver fazer e de ajudar a fazer. Um homem que pretende «espevitar» as mentalidades e os agentes do país para, lá vem novo cliché, enfrentar os «novos desafios». E àqueles que o acusam de criar falsas expectativas ou de mentir sobre hipotéticas práticas ou decisões que caem fora do âmbito do PR (por manifesta falta de instrumentos legais, formais e materiais), lembro um facto que qualquer criança alcança: indicar caminhos, falar sobre o que deve ser feito, elencar prioridades, dar a sua opinião sobre questões concretas, não é o mesmo que dizer que pretende levá-las a cabo ou chamar a si a responsabilidade de as concretizar. Trata-se de ter ideias para o país. Só, aliás, por má-fé se podem esquecer as dezenas de vezes em que Cavaco se referiu à moderação, ao diálogo e à ajuda que pretende dar ao(s) governo(s) da nação. Nunca, em tempo algum, Cavaco terá insinuado qualquer coisa em contrário, dando provas de que conhece os constrangimentos da função de PR e a forma como a mesma se encontra constitucionalmente balizada para outros voos.
Do outro lado, o «senador». O putativo paizinho da pátria (estatuto que ele pensa justificar quase tudo), esteve sobretudo empenhado, sob a complacência dos (fracos, muito fracos) entrevistadores, em denegrir Cavaco, em aviltar a sua personalidade, em menosprezar as suas evidentes qualidades (que ninguém, de boa-fé, pode sonegar). E tudo isto com base em premonições, sensações e palpites muito particulares (insuperavelmente subjectivos e quase sempre patéticos). Abusando do pronome pessoal, ouvimos de tudo: que ele é «rígido»; que ele não fala; que ele é distante; que ele «não tem formação»; que ele não passa de um «economista razoável» (ser-se economista é anátema, na boca de Soares); que ele é um ignorante em História; que ele não conhece o mundo que o rodeia. O delírio argumentativo, portanto, tendo em conta a «profunda» sagacidade de quem vislumbra, por aí, uma «cidadania mundial»(?), uma «economia global»(?), um «movimento transnacional»(?).
É claro que, em matéria de banalidades, Soares foi surpreendentemente inédito e singular: é pela liberdade, pelo diálogo, pela democracia e pelo pluralismo (assim, vejam bem, sem mais nem menos). E, obviamente, está ao lado dos desfavorecidos. Originalíssimo. Cavaco, como lembrou Soares, para além de pertencer à ímpia Direita (logo «insensível» e «rígido»), está mortinho para desestabilizar tudo e todos. Mortes na rua? Vão ser às milhares. Sim, que esta democracia já não é o que era.
No fim, ainda pensei: “Soares foi arrumado neste pseudo-debate, em que dois entrevistadores manga-de-alpaca foram coadjuvados por um instigador de serviço, cujas armas remeteram para a descortesia e para a retórica de vão-de-escada.” Mas depressa percebi que não. Os plumitivos, logo de seguida, explicaram. Eu, tenho bom remédio: ou aceito as regras do circo – do contorcionismo retórico, do arrazoado mendaz, da perpetuação monástica de estatutos e das eminências pardas – ou arrumo as botas. Seja como for, estou a perder qualidades.
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