Os colos e os travestis
(via email)
A exemplo de qualquer bom cidadão, intelectual, comentador ou político, ou mais ainda dos esclarecidos pensadores que virtuosamente acumulam esses atributos, sou totalmente contra a utilização de aspectos da vida privada, nomeadamente orientação sexual ou religião, no processo de escolha política ou de qualquer outra função pública.
A única diferença em relação a muitos deles, e convenhamos que não é pequena, é que esta minha posição não varia conforme o sector ideológico de quem acusa ou é acusado. Basta lembrar, por exemplo, que muitos dos indignados de última hora ainda há pouco tempo ficavam indiferentes ou mesmo activamente aplaudiam o afastamento do senhor Buttiglione devido às suas convicções religiosas, faziam piadas sobre a faceta playboy do Primeiro Ministro ou assobiavam para o lado quando o socialista Carlos Candal acusava o “lobby gay” (atacando Paulo Portas) de dominar a política.
No meio de tudo isto há no entanto um aspecto, mais sócio-cultural que politiqueiro, que é interessante salientar:
Reparem que ninguém se incomoda por aí além com a prática corrente e antiga de se fazerem acusações mútuas sobre aspectos relevantes da personalidade dos intervenientes políticos. Insinuar ou mesmo classificar os adversários como desonestos, incompetentes, vigaristas, tiranos, estúpidos, ou até como inimputáveis, palhaços, e intelectualmente diminuídos, são moeda corrente no discurso político, em comícios, discursos na Assembleia, declarações e escritos nos média. Não sei se por hábito, se por enfiar a carapuça, ninguém se indigna com o facto, sem bem que ultimamente com a curiosa e púdica excepção de isso aparecer nos “outdoors”. Provavelmente esta ressalva é devida à eterna mentalidade burocrática que nos anima. Afinal cartaz é cartaz, e o que lá está escarrapachado fica em documento escrito para a posteridade.
No entanto, com ou sem “outdoor”, a alusão a situações que não são de modo algum insultuosas nem negativas, mas onde o preconceito está mais presente, causa de imediato um clamor inusitado. Lembro a menção à deficiência física de Sousa Franco (“um senhor que usa óculos esquisitos”) e a mais actual referência aos “colos”, interpretada como remoque à eventual homossexualidade de um candidato.
Note-se que em ambos os casos nunca houve a implicação de causalidade “tem esta característica, logo não pode exercer o cargo” mas apenas a mera e neutra insinuação de que essa característica existirá, esperando (e aí estará a baixeza do procedimento) que o impacto disso nas mentalidades mais retrógradas tenha efeitos eleitorais.
O mais lamentável é que essa postura preconceituosa de um significativo sector da população acaba por ser poderosamente reforçada pela reacção de quem, em outras alturas, passa vida a exibir-se contestando a discriminação e a apelar (bem) à aceitação de condições como a homossexualidade ou handicaps físicos ou psíquicos como algo de natural e a respeitar.
Na verdade, em ocasiões em que a indignação dá mais votos (ou em que os instintos básicos vêm à superfície) esses mesmos timoneiros da modernidade acham que rotular alguém com esses atributos é “insultuoso”, “porco”, “difamante”, “baixo” e muitos outros epítetos similares que agora se podem ler e ouvir todos os dias. Mesmo a principal reacção dos atingidos é geralmente dizer que são boatos falsos, como quem afasta uma peçonha. A própria dimensão do alarido, que não mereceria mais que o desprezo dado a um fait-divers, só é possível num país onde afinal os indignados têm uma abertura de espírito muito longe do que apregoam, acabando por ser eles próprios a sugerir que a homossexualidade ou outras divergências da norma não parecem ser assim tão aceitáveis.
Ao fim e ao cabo, estes dias têm demonstrado claramente que o verniz politicamente correcto de muito bom neo-moralista pós-moderno, não passa frequentemente de um moralismo balofo travestido (e aqui travesti não é insinuação).
Fernando Gomes da Costa
Médico, sexólogo
A exemplo de qualquer bom cidadão, intelectual, comentador ou político, ou mais ainda dos esclarecidos pensadores que virtuosamente acumulam esses atributos, sou totalmente contra a utilização de aspectos da vida privada, nomeadamente orientação sexual ou religião, no processo de escolha política ou de qualquer outra função pública.
A única diferença em relação a muitos deles, e convenhamos que não é pequena, é que esta minha posição não varia conforme o sector ideológico de quem acusa ou é acusado. Basta lembrar, por exemplo, que muitos dos indignados de última hora ainda há pouco tempo ficavam indiferentes ou mesmo activamente aplaudiam o afastamento do senhor Buttiglione devido às suas convicções religiosas, faziam piadas sobre a faceta playboy do Primeiro Ministro ou assobiavam para o lado quando o socialista Carlos Candal acusava o “lobby gay” (atacando Paulo Portas) de dominar a política.
No meio de tudo isto há no entanto um aspecto, mais sócio-cultural que politiqueiro, que é interessante salientar:
Reparem que ninguém se incomoda por aí além com a prática corrente e antiga de se fazerem acusações mútuas sobre aspectos relevantes da personalidade dos intervenientes políticos. Insinuar ou mesmo classificar os adversários como desonestos, incompetentes, vigaristas, tiranos, estúpidos, ou até como inimputáveis, palhaços, e intelectualmente diminuídos, são moeda corrente no discurso político, em comícios, discursos na Assembleia, declarações e escritos nos média. Não sei se por hábito, se por enfiar a carapuça, ninguém se indigna com o facto, sem bem que ultimamente com a curiosa e púdica excepção de isso aparecer nos “outdoors”. Provavelmente esta ressalva é devida à eterna mentalidade burocrática que nos anima. Afinal cartaz é cartaz, e o que lá está escarrapachado fica em documento escrito para a posteridade.
No entanto, com ou sem “outdoor”, a alusão a situações que não são de modo algum insultuosas nem negativas, mas onde o preconceito está mais presente, causa de imediato um clamor inusitado. Lembro a menção à deficiência física de Sousa Franco (“um senhor que usa óculos esquisitos”) e a mais actual referência aos “colos”, interpretada como remoque à eventual homossexualidade de um candidato.
Note-se que em ambos os casos nunca houve a implicação de causalidade “tem esta característica, logo não pode exercer o cargo” mas apenas a mera e neutra insinuação de que essa característica existirá, esperando (e aí estará a baixeza do procedimento) que o impacto disso nas mentalidades mais retrógradas tenha efeitos eleitorais.
O mais lamentável é que essa postura preconceituosa de um significativo sector da população acaba por ser poderosamente reforçada pela reacção de quem, em outras alturas, passa vida a exibir-se contestando a discriminação e a apelar (bem) à aceitação de condições como a homossexualidade ou handicaps físicos ou psíquicos como algo de natural e a respeitar.
Na verdade, em ocasiões em que a indignação dá mais votos (ou em que os instintos básicos vêm à superfície) esses mesmos timoneiros da modernidade acham que rotular alguém com esses atributos é “insultuoso”, “porco”, “difamante”, “baixo” e muitos outros epítetos similares que agora se podem ler e ouvir todos os dias. Mesmo a principal reacção dos atingidos é geralmente dizer que são boatos falsos, como quem afasta uma peçonha. A própria dimensão do alarido, que não mereceria mais que o desprezo dado a um fait-divers, só é possível num país onde afinal os indignados têm uma abertura de espírito muito longe do que apregoam, acabando por ser eles próprios a sugerir que a homossexualidade ou outras divergências da norma não parecem ser assim tão aceitáveis.
Ao fim e ao cabo, estes dias têm demonstrado claramente que o verniz politicamente correcto de muito bom neo-moralista pós-moderno, não passa frequentemente de um moralismo balofo travestido (e aqui travesti não é insinuação).
Fernando Gomes da Costa
Médico, sexólogo
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