O MacGuffin: NÃO IMBECILIZEMOS AS CRIANCINHAS

quinta-feira, novembro 25, 2004

NÃO IMBECILIZEMOS AS CRIANCINHAS

Lembro-me como se fosse hoje. No princípio dos idos 90, António Santos apresentava um programa na RTP1 intitulado Controvérsias, subordinado ao tema do Acordo Ortográfico, então muito na berra. Contra o acordo, Miguel Esteves Cardoso, Maria Isabel Rebelo Gonçalves e Leonor Buesco. A favor do acordo, Costa Ramalho, Anibal Pinto de Castro e Carlos Reis (a primeira vez que travei conhecimento com essa criatura absolutamente insuportável chamada Carlos Reis). Foi também nesse programa que ouvi, talvez pela primeira vez, um dos argumentos que os partidários do acordo juravam justificar a queda das consoantes e dos sinais distintivos nas palavras: facilitar o ensino do português – no nosso país e no estrangeiro. Segundo Costa Ramalho e respectivos séquitos, as criancinhas, em Portugal, estavam sujeitas a graves sevícias mentais, devido ao confronto diário com um sem número de consoantes mudas, as quais, para além de desnecessárias, só «complicavam». É claro que a excelente Maria Isabel Rebelo Gonçalves avançou com o argumento que se impunha: se as criancinhas inglesas aguentavam com os straightforward, os thoroughly e os ninetieth, por que razão não podiam as nossas aguentar com o cê em “acção”ou em “jacto”? Seriam mentecaptas ou atrasadas mentais?

Esta tendência para «imbecilizar» as crianças – que não é mais do que uma forma de menosprezar e desvalorizar as suas reais capacidades - vem de longe e continua presente em muitas discussões sobre o «ensino». Repare-se no mais recente caso, ou no mais recente anátema, que meia dúzia de pedopsicólogos e pedadogos acaba de lançar à liça: os «trabalhos para casa», vulgo TPC’s.

Não posso deixar de pensar que algo de muito errado se está a passar nas nossas sociedades, quando insistimos em perder tempo a discutir o que era suposto ser pacífico, dando tempo de antena a meia dúzia de «especialistas». Ainda recentemente, numa reunião de pais, a professora da minha filha – uma excelente e dedicada professora - fez questão de lançar para cima da mesa a questão – elevada, agora, a «problemática» - dos TPC’s, pedindo aos pais a sua opinião: se concordavam com os ditos «trabalhos», se os achavam excessivamente extensos ou trabalhosos, se defendiam a introdução de nova metodologia. Entendo, e agradeço, a preocupação de professores em dialogar com os encarregados de educação, abordando os mais diversos temas, mas não posso deixar de presumir que, em certas questões, o grau de inocência na abordagem é baixo e duvido que a iniciativa seja puramente pessoal. Estou em crer que, nestas questões, a mãozinha do ministério e dos pedagogos de serviço marcam presença. Voltando à reunião, a resposta dos pais foi a óbvia: que os TPC’s eram importantes, que não eram, de todo, excessivos, e que cabia à professora decidir essas coisas. Não que tais opiniões e tomadas de posição interessem, sensibilizem ou melindrem as cabecinhas pensadoras que, agora, vêem nos TPC’s uma ameaça ao são convívio familiar (se os pais estão cada vez menos com os filhos, para quê ocupá-los com estas «maçadas»?.) e uma fonte de stress para as crianças (na forma como as impedem de brincar e de fruir a sua doce inocência).

Com a devida vénia, pasmo. A não ser aqueles professores que eventualmente sofram de perturbações mentais, duvido que algum professor envie TPC’s numa quantidade que exceda a razoável. Que dão trabalho, lá isso dão. Afinal de contas, por alguma razão se chamam «trabalhos» (antigamente, no tempo dos nossos pais e avós, apelidavam-se de «deveres»). Mas mesmo em momentos de maior «intensidade», qualquer TPC – e falo do ensino básico - é resolvido em menos de uma hora. Uma hora é, aliás, muitíssimo. Qualquer aluno minimamente concentrado, que esteja numa sala com a televisão desligada e com a presença de um adulto para o orientar q.b., faz o que tem a fazer num abrir e fechar de olhos. Interessa perguntar: «perder» uma hora por dia a fazer os trabalhos de casa poderá ser considerado traumatizante, stressante, fatigante?

O problema talvez seja outro. O que é quantitativamente razoável para a professora, e o que se afigura perfeitamente normal para crianças igualmente normais que vivem em ambientes familiares também normais, pode colidir com aquele que, para mim, talvez constitua o busílis, ou o gérmen, do problema: o estilo de vida e de organização adoptado pelos pais. A questão não é fácil, e muito menos simples. Mas antes de falarmos nos já famosos «horários de trabalho», nas «filas de trânsito», nas «horas extraordinárias lá na empresa», nos «jantares de negócios», seria interessante perguntar aos progenitores, onde eu humildemente me incluo: o que têm feito ultimamente em prol dos vossos filhos? Têm procurado estar com eles? Têm procurado acompanhá-los nos trabalhos de casa? Têm incentivado o estudo? Têm ajudado os seus filhos a organizarem-se? Têm evitado recorrer à babysitter virtual chamada televisão? Têm deixado de os descarregar em ATL’s ou na casa de amigos? Disperso-me. Voltemos aos TPC’s.

Jonathan Rauch, escritor residente na Brookings Institution e correspondente da The Atlantic, escrevia, na penúltima edição da revista (Novembro), um pequeno artigo cujo subtítulo rezava assim: ”There’s a way to raise student achievement that’s sensible, cheap, and ridiculously straightforward.” Qual? ”Add more homework.” Segundo Rauch, o simples facto de haver trabalhos de casa – subentendendo-se que são para fazer - aumenta o índice de realização do estudante. Pelo menos, acrescenta, em anos lectivos mais avançados (o equivalente ao secundário e ao universitário). A situação nos EUA não é famosa: segundo a National Assessment of Educational Progress, cerca de 60% dos alunos na faixa etária dos 17, dedicam menos de uma hora por dia aos trabalhos de casa e ao estudo (o equivalente a cerca de dez minutos por disciplina). 40% chegam a casa e nem sequer os fazem. Pergunta Rauch: o que estará por detrás deste cenário? Podemos sempre avançar com a explicação de que os pais não verão com bons olhos os TPC’s por se afigurarem como uma espécie de intromissão da escola no quotidiano familiar. Mas Rauch vai mais longe, e arrisca mesmo a L-word: “lazyness”. De acordo com Tom Loveless, do Brown Center, se os tais 40% passassem a dedicar uma hora por dia ao estudo e aos trabalhos de casa (embora pouco, seria alguma coisa), os níveis de sucesso escolares subiriam não pouco, mas substancialmente. Ah, claro, com stress...

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