CORREIO (AINDA O “CASO BUTTIGLIONE”)
(revisto)
De Pedro Mexia:
”Meu caro:
Como sabes, tenho por costume não responder, em blogues, a textos que tenha publicado na imprensa. Caso contrário, nem me sobrava tempo para escrever posts. Abro uma excepção no teu caso, porque se trata de um blogue (e de um bloguista) que eu acompanho e admiro desde o início. E também porque se trata de um assunto que me diz muito.
O meu texto d’ O Independente é o texto de um católico que está crescentemente decepcionado com o catolicismo (penso que terás acompanhado esse processo desde A Coluna Infame). Nisso, o «caso Buttiglione» é apenas mais um episódio. É possível que tenhamos opiniões diferentes sobre o que se passou. Mas não são tão diferentes como isso: ambos achamos que o senhor Buttiglione (como qualquer pessoa) tem o direito a exprimir a sua opinião sobre qualquer matéria, por minoritária ou «incorrecta» que seja. Se o tivesse dito numa entrevista, noutro momento (como aconteceu doutras vezes), nem me merecia comentário. Mas ter caído daquela forma naquela armadilha pareceu-me uma tontice. Não se trata de uma defesa da dissimulação, como sugeres, mas apenas da precaução de não trazer para o foro público matérias do foro privado, como são as convicções religiosas. O «pecado» não é matéria que se discuta num parlamento.
Também não coincidimos na expectativa que essas frases lançaram sobre o (eventual) mandato do comissário indigitado. Pelos vistos, acreditas que a opinião de Buttiglione sobre a homossexualidade e o casamento não teria qualquer influência no seu desempenho no pelouro da Justiça (que inclui as políticas de não-discriminação). Eu temo que tivesse. Acho que, não obstante o decisivo distinguo entre moral e direito, não se pode ser activamente contra a homossexualidade e depois exercer um cargo onde se tem de proceder como se se considerasse a homossexualidade normal. Não creio que um militante católico conservador como é Buttiglione conseguisse fazer essa separação no futuro. E ficava sempre a suspeita, a cada decisão nessa matéria. Além disso, creio que a opinião de Buttiglione, embora respeitável, não traduz o pensamento maioritário sobre esses temas. Ora, num parlamento, o pensamento maioritário tem toda a importância. Repara que não confundo maioria e razão. A maioria está muitas vezes errada. Mas se existe uma maioria sociológica (e política) num determinado sentido, não é sensato que um político (que procura a aprovação de um parlamento) faça um escusado braço-de-ferro. E isto independentemente de eu concordar ou não com as opiniões de Buttiglione (não concordo) ou de achar que são ou não indiscutíveis para um católico (acho que são muito discutíveis). O meu ponto é que, por inabilidade ou provocação, o italiano causou uma crise que não era necessária. E uma crise na Europa, neste momento, tem consequências danosas.
E aqui chegamos ao ponto central do meu texto. Julgo que os católicos têm combatido combates errados. Dou os exemplos do cristianismo na Constituição Europeia e da adesão da Turquia. No primeiro caso, é uma guerra simbólica, sobre um assunto menor. Admito perfeitamente que isso fosse importante para alguns militantes, mas não que se fizesse disso um casus belli. Um preâmbulo de uma Constituição (como sabemos pela nossa) é uma balela, quando muito uma batalha semântica, mais nada. Já no que diz respeito à Turquia, acho lamentável que políticos cristãos desenterrem o argumento religioso, quando a Turquia é um raríssimo caso de islamismo moderado, que devemos defender em vez de afastar como ímpio.
O caso Buttiglione, para mim, é mais um sintoma de uma desastrada intervenção política dos católicos. Mais um. Que continua o repugnante papel que a Igreja Católica teve na guerra do Iraque. Não me esqueço facilmente do facínora «cristão» Tareq Aziz em Assis, a «rezar» pela «paz». Nem de padres e bispos a dizer que para o cristianismo a guerra nunca (repito: nunca) se justifica (pobre S. Tomás de Aquino). Estas coisas deixam-me indignado.
Se quiseres, eu identifico-me com uma concepção privada da esfera religiosa (como te recordarás, defendi isso mesmo várias vezes). Nesse sentido, subscrevo inteiramente as palavras que citas do João Pereira Coutinho: (...) essa foi a principal conquista do cristianismo: um espaço íntimo, intocável e privado, onde a «polis» não entra. Com essa concepção de cristianismo estou totalmente pacificado. Mas creio que esse espaço íntimo também não deve entrar excessivamente na «polis», visto que esta é laica e plural. Admito que um católico faça intervir a sua consciência religiosa em casos extremos (estaria mesmo disposto a admitir que o aborto é um desses casos); mas não creio que a permanente mistura entre a esfera religiosa e a esfera política dê (e tenha dado) bons resultados. Quer para a religião quer para a política. E sinto que os católicos estão cada vez mais interventivos no mau sentido, no mesmo sentido inaceitável da «direita religiosa» americana que certamente desprezas tanto quanto eu.
Quanto ao mais, totalmente de acordo: um cristão paga sempre mais caro as suas opiniões que outra pessoa. E claro que o jacobinismo regressou em grande. Mas não creio - mesmo enquanto católico – que à intolerância dos jacobinos se deva responder com a insensatez dos pregadores.
Desculpa a extensão do mail, mas esta matéria não é tipo Santana. É, para mim, muito «close to the bone». O que se passa em minha casa traz-me mais perturbação do que o que acontece na casa do vizinho.
Um abraço
Pedro
Caro Pedro,
Como era de prever, aproximámo-nos irremediavelmente. Concordo com muito do que escreves. Buttiglione tem o direito e a liberdade de poder exprimir a sua opinião, por minoritária ou «incorrecta» que seja. Por principio, matérias do foro privado devem permanecer afastadas do espaço público. Seria provável que se lançassem suspeitas sobre decisões de Buttiglione em matérias que envolvessem questões de «não-descriminação», e o próprio Buttiglione sentir-se-ia condicionado sob a iminência dessa «suspeita». A forma como a Igreja se tem imiscuído em matérias de natureza estrita ou marcadamente política, tem sido, no mínimo, infeliz (e tem conduzido a situações hilariantes, com gente que abomina a igreja de braço dado com esta). A concepção privada da esfera religiosa é uma questão fulcral, fundamental para o futuro da(s) religião(ões). Ambos comungamos do desprezo por uma certa direita religiosa americana (reaccionária, demagoga, estapafúrdia).
Dito isto, foi a «polis» que invadiu o «espaço íntimo», ou o contrário? Eu continuo a achar que foi a «polis» que amplificou, para além do razoável, uma convicção intima, pessoal, declaradamente «intransmissível». Buttiglione fez questão de frisar – e este é um ponto importante - que, para além de pessoal, aqueles «preconceitos» (sobre a homossexualidade, o casamento, etc.) em nada beliscariam as ideias de tolerância, respeito e não-descriminação inscritas na Constituição e na Carta dos Direitos Humanos, que ele próprio professa e jurou cumprir. Buttiglione não disse, aliás, nada de novo, nem de sequer de (muito) grave. Não penso, por isso, que tenha sido o «espaço íntimo» a invadir a «polis», mas sim a «polis» que se deixou deliberadamente invadir por esse «espaço íntimo», em nome do «politicamente correcto». Por outro lado, não sei até que ponto se justificava colocar o tipo de perguntas que levaram Buttiglione a responder o que respondeu (e Buttiglione poderia ter sido menos inábil, sabendo, de antemão, o que a casa gasta). A sensação com que se fica é a de que Buttiglione esteve na presença de uma comissão inquisitorial, a qual, dado o desenlace do caso, parece empenhada em sobrevalorizar matérias do foro privado, em detrimento de questões supostamente mais importantes para um cargo de comissário europeu, como é o caso da competência técnica/profissional. Imaginemos, por um momento, que todos os católicos pensavam como Buttiglione (não pensam, de facto). Ficaria claro que, na tolerante e multicultural Europa, nenhum católico poderia ocupar o pelouro da Justiça, a não ser, claro, um católico dissimulado. Esta ideia incomoda-me e revela bem da intransigência de uma certa elite intelectual e política, empenhada em cunhar na Europa o escudo do politicamente correcto.
Dizes, com razão, que o pecado não é matéria que se discuta num parlamento. O próprio termo «pecado» foi, nesta discussão, como tem sido noutras, elevado a anátema. A conotação dada por um católico ao termo «pecado» pode ser, e geralmente é, bem diferente daquela que um não-católico está disposto a conceder. Desde Rosseau que o homem deixou de nascer com o pecado original para vir ao mundo com uma espécie de «virtude original». A questão do bem e do mal passou a ser vista às avessas: como é que seres humanos inerentemente bons podem praticar o mal, aderir ao vício, transgredir ou desviar-se da norma. Buttiglione, na sua ingenuidade e nas suas convicções pessoais (que estão a milhas das de um fanático religioso), personifica um mundo velho. Um mundo absolutista, mais do que relativista. Um mundo repleto de pre-conceitos morais (que, na maior parte dos casos, não passam de ancestrais ideias sobre o mundo e a vida) e de convicções, incompatíveis com a pós-modernidade e com o que se achou por bem estabelecer como norma. Convém, por isso, expurgar da construção europeia todo e qualquer tipo de «incorrecções», «devaneios», «anacronismos». O futuro será perfeito. E, está visto, o Sr. Buttiglione não faz parte dele.
De Pedro Mexia:
”Meu caro:
Como sabes, tenho por costume não responder, em blogues, a textos que tenha publicado na imprensa. Caso contrário, nem me sobrava tempo para escrever posts. Abro uma excepção no teu caso, porque se trata de um blogue (e de um bloguista) que eu acompanho e admiro desde o início. E também porque se trata de um assunto que me diz muito.
O meu texto d’ O Independente é o texto de um católico que está crescentemente decepcionado com o catolicismo (penso que terás acompanhado esse processo desde A Coluna Infame). Nisso, o «caso Buttiglione» é apenas mais um episódio. É possível que tenhamos opiniões diferentes sobre o que se passou. Mas não são tão diferentes como isso: ambos achamos que o senhor Buttiglione (como qualquer pessoa) tem o direito a exprimir a sua opinião sobre qualquer matéria, por minoritária ou «incorrecta» que seja. Se o tivesse dito numa entrevista, noutro momento (como aconteceu doutras vezes), nem me merecia comentário. Mas ter caído daquela forma naquela armadilha pareceu-me uma tontice. Não se trata de uma defesa da dissimulação, como sugeres, mas apenas da precaução de não trazer para o foro público matérias do foro privado, como são as convicções religiosas. O «pecado» não é matéria que se discuta num parlamento.
Também não coincidimos na expectativa que essas frases lançaram sobre o (eventual) mandato do comissário indigitado. Pelos vistos, acreditas que a opinião de Buttiglione sobre a homossexualidade e o casamento não teria qualquer influência no seu desempenho no pelouro da Justiça (que inclui as políticas de não-discriminação). Eu temo que tivesse. Acho que, não obstante o decisivo distinguo entre moral e direito, não se pode ser activamente contra a homossexualidade e depois exercer um cargo onde se tem de proceder como se se considerasse a homossexualidade normal. Não creio que um militante católico conservador como é Buttiglione conseguisse fazer essa separação no futuro. E ficava sempre a suspeita, a cada decisão nessa matéria. Além disso, creio que a opinião de Buttiglione, embora respeitável, não traduz o pensamento maioritário sobre esses temas. Ora, num parlamento, o pensamento maioritário tem toda a importância. Repara que não confundo maioria e razão. A maioria está muitas vezes errada. Mas se existe uma maioria sociológica (e política) num determinado sentido, não é sensato que um político (que procura a aprovação de um parlamento) faça um escusado braço-de-ferro. E isto independentemente de eu concordar ou não com as opiniões de Buttiglione (não concordo) ou de achar que são ou não indiscutíveis para um católico (acho que são muito discutíveis). O meu ponto é que, por inabilidade ou provocação, o italiano causou uma crise que não era necessária. E uma crise na Europa, neste momento, tem consequências danosas.
E aqui chegamos ao ponto central do meu texto. Julgo que os católicos têm combatido combates errados. Dou os exemplos do cristianismo na Constituição Europeia e da adesão da Turquia. No primeiro caso, é uma guerra simbólica, sobre um assunto menor. Admito perfeitamente que isso fosse importante para alguns militantes, mas não que se fizesse disso um casus belli. Um preâmbulo de uma Constituição (como sabemos pela nossa) é uma balela, quando muito uma batalha semântica, mais nada. Já no que diz respeito à Turquia, acho lamentável que políticos cristãos desenterrem o argumento religioso, quando a Turquia é um raríssimo caso de islamismo moderado, que devemos defender em vez de afastar como ímpio.
O caso Buttiglione, para mim, é mais um sintoma de uma desastrada intervenção política dos católicos. Mais um. Que continua o repugnante papel que a Igreja Católica teve na guerra do Iraque. Não me esqueço facilmente do facínora «cristão» Tareq Aziz em Assis, a «rezar» pela «paz». Nem de padres e bispos a dizer que para o cristianismo a guerra nunca (repito: nunca) se justifica (pobre S. Tomás de Aquino). Estas coisas deixam-me indignado.
Se quiseres, eu identifico-me com uma concepção privada da esfera religiosa (como te recordarás, defendi isso mesmo várias vezes). Nesse sentido, subscrevo inteiramente as palavras que citas do João Pereira Coutinho: (...) essa foi a principal conquista do cristianismo: um espaço íntimo, intocável e privado, onde a «polis» não entra. Com essa concepção de cristianismo estou totalmente pacificado. Mas creio que esse espaço íntimo também não deve entrar excessivamente na «polis», visto que esta é laica e plural. Admito que um católico faça intervir a sua consciência religiosa em casos extremos (estaria mesmo disposto a admitir que o aborto é um desses casos); mas não creio que a permanente mistura entre a esfera religiosa e a esfera política dê (e tenha dado) bons resultados. Quer para a religião quer para a política. E sinto que os católicos estão cada vez mais interventivos no mau sentido, no mesmo sentido inaceitável da «direita religiosa» americana que certamente desprezas tanto quanto eu.
Quanto ao mais, totalmente de acordo: um cristão paga sempre mais caro as suas opiniões que outra pessoa. E claro que o jacobinismo regressou em grande. Mas não creio - mesmo enquanto católico – que à intolerância dos jacobinos se deva responder com a insensatez dos pregadores.
Desculpa a extensão do mail, mas esta matéria não é tipo Santana. É, para mim, muito «close to the bone». O que se passa em minha casa traz-me mais perturbação do que o que acontece na casa do vizinho.
Um abraço
Pedro
Caro Pedro,
Como era de prever, aproximámo-nos irremediavelmente. Concordo com muito do que escreves. Buttiglione tem o direito e a liberdade de poder exprimir a sua opinião, por minoritária ou «incorrecta» que seja. Por principio, matérias do foro privado devem permanecer afastadas do espaço público. Seria provável que se lançassem suspeitas sobre decisões de Buttiglione em matérias que envolvessem questões de «não-descriminação», e o próprio Buttiglione sentir-se-ia condicionado sob a iminência dessa «suspeita». A forma como a Igreja se tem imiscuído em matérias de natureza estrita ou marcadamente política, tem sido, no mínimo, infeliz (e tem conduzido a situações hilariantes, com gente que abomina a igreja de braço dado com esta). A concepção privada da esfera religiosa é uma questão fulcral, fundamental para o futuro da(s) religião(ões). Ambos comungamos do desprezo por uma certa direita religiosa americana (reaccionária, demagoga, estapafúrdia).
Dito isto, foi a «polis» que invadiu o «espaço íntimo», ou o contrário? Eu continuo a achar que foi a «polis» que amplificou, para além do razoável, uma convicção intima, pessoal, declaradamente «intransmissível». Buttiglione fez questão de frisar – e este é um ponto importante - que, para além de pessoal, aqueles «preconceitos» (sobre a homossexualidade, o casamento, etc.) em nada beliscariam as ideias de tolerância, respeito e não-descriminação inscritas na Constituição e na Carta dos Direitos Humanos, que ele próprio professa e jurou cumprir. Buttiglione não disse, aliás, nada de novo, nem de sequer de (muito) grave. Não penso, por isso, que tenha sido o «espaço íntimo» a invadir a «polis», mas sim a «polis» que se deixou deliberadamente invadir por esse «espaço íntimo», em nome do «politicamente correcto». Por outro lado, não sei até que ponto se justificava colocar o tipo de perguntas que levaram Buttiglione a responder o que respondeu (e Buttiglione poderia ter sido menos inábil, sabendo, de antemão, o que a casa gasta). A sensação com que se fica é a de que Buttiglione esteve na presença de uma comissão inquisitorial, a qual, dado o desenlace do caso, parece empenhada em sobrevalorizar matérias do foro privado, em detrimento de questões supostamente mais importantes para um cargo de comissário europeu, como é o caso da competência técnica/profissional. Imaginemos, por um momento, que todos os católicos pensavam como Buttiglione (não pensam, de facto). Ficaria claro que, na tolerante e multicultural Europa, nenhum católico poderia ocupar o pelouro da Justiça, a não ser, claro, um católico dissimulado. Esta ideia incomoda-me e revela bem da intransigência de uma certa elite intelectual e política, empenhada em cunhar na Europa o escudo do politicamente correcto.
Dizes, com razão, que o pecado não é matéria que se discuta num parlamento. O próprio termo «pecado» foi, nesta discussão, como tem sido noutras, elevado a anátema. A conotação dada por um católico ao termo «pecado» pode ser, e geralmente é, bem diferente daquela que um não-católico está disposto a conceder. Desde Rosseau que o homem deixou de nascer com o pecado original para vir ao mundo com uma espécie de «virtude original». A questão do bem e do mal passou a ser vista às avessas: como é que seres humanos inerentemente bons podem praticar o mal, aderir ao vício, transgredir ou desviar-se da norma. Buttiglione, na sua ingenuidade e nas suas convicções pessoais (que estão a milhas das de um fanático religioso), personifica um mundo velho. Um mundo absolutista, mais do que relativista. Um mundo repleto de pre-conceitos morais (que, na maior parte dos casos, não passam de ancestrais ideias sobre o mundo e a vida) e de convicções, incompatíveis com a pós-modernidade e com o que se achou por bem estabelecer como norma. Convém, por isso, expurgar da construção europeia todo e qualquer tipo de «incorrecções», «devaneios», «anacronismos». O futuro será perfeito. E, está visto, o Sr. Buttiglione não faz parte dele.
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