O MacGuffin

sábado, maio 10, 2003

PESSIMISMO CONSERVADOR

O conservadorismo fundamenta-se em três crenças básicas: cepticismo, pluralismo, tradicionalismo e pessimismo. Sobre o pessimismo (antropológico), muito boa gente, do lado da esquerda, esfregou as mãos de contente, em sinal de chacota, quando supostamente apanharam os ‘conservas’ em manifesta contradição, por estes terem apoiado a intervenção militar no Iraque. Segundo o argumento da esquerda, só mesmo um optimista - idealista e ingénuo (termos estranhos ao conservadorismo) - poderia apoiar a guerra no Iraque. Seria inconcebível a um conservador defender uma acção que, entre outras coisas, poderia provocar sérios danos nas tradições de um povo e nas ligações - afectivas, comerciais, institucionais - entre pessoas, famílias, etc. Aparte a hilariante contradição interna desse argumento – teriam os esquerdistas sido os conservadores neste assunto? – importa tentar explicar o que leva um conservador a apoiar uma intervenção militar para derrubar um regime ditatorial.

Tomando em linha de conta os argumentos apresentados por Peter Hitchens, em artigo na Spectator, e os argumentos um tanto ou quanto simplistas do Manuel, no Blogue de Esquerda, pode à superfície parecer que uma posição de apoio a uma intervenção militar – ao fim ao cabo uma postura pró-activa que inflige sérios danos no modus vivendi e nos equilíbrios sociais (precários) dos países nela envolvidos - colide com a natureza do conservadorismo. Acontece que o putativo tiro no pé não existiu e o exercício de chacota pode recolher à base. Passo a explicar porquê.

De que falamos, afinal, quando falamos de pessimismo, em sede de moral política? Recorro a John Kekes. Para o pessimista (conservador) o mal, no mundo, é predominante. A sua predominância é um sinal claro da propensão do ser humano para o causar. Esta propensão para causar o mal é uma característica permanente da vida moral do ser humano. Embora seja uma característica inata, a sua expressão pode ser influenciada pelo tipo de organização política adoptada e pela disposição de valores daí resultante. Dito isto, para o conservador, tentar evitar o mal é uma função inerente à sua postura no mundo. Para o conservador, as sociedades devem acarinhar e apadrinhar as possibilidades que permitam melhorar a vida (o que contraria a ideia feita de que o conservador não aceita reformas). É, por isso, necessário impor limites e restrições sobre os potenciais focos do mal, resultantes dos vícios do ser humano – no limite perpetrados por monstros amorais, morais ou malévolos. Essas restrições podem ser aplicadas a governos e ao Estado, como garantia contra o despotismo e o livre arbítrio do exercício do poder. Como referiu o Prof. Anthony O’Grady “the conservative, though open to reform, will be cautious about the large-scale disturbance of things which are running reasonably well. He will also seek to uncover the wisdom latent in ancient institutions and traditions.” Ora, que eu saiba as coisas não estavam a correr razoavelmente bem no Iraque (estou a ser benevolente) e o regime de Saddam foi especialista em, sistemática e meticulosamente, enterrar o passado (chegando ao ponto de cortar com tradições ancestrais e «recriar» cidades históricas inteiras a régua e esquadro.)

Era por demais sabido que Saddam Hussein procurava, por todos os meios, reunir um arsenal de armas de destruição maciça. A rodeá-lo estavam iminentes cientistas especializados nesse tipo de armas e a história demonstrava que ele já as havia utilizado. Durante os anos pós-guerra do golfo, só não as terá utilizado por culpa da derrota no conflito de 1991 (que lhe minou internamente boa parte do arsenal bélico e os meios de fabrico dessas armas), mas também por culpa de uma maior vigilância por parte da comunidade internacional. Também era sabido que, se o espaço de manobra tinha sido reduzido nos anos subsequentes à guerra do golfo, de 1998 a esta parte um manto de dúvida e receio pairava sobre as intenções e meios de Saddam, uma vez que as suas movimentações tinham deixado de ser monitorizadas, numa altura em que o mundo assistia, após o desmantelamento do bloco soviético, ao tráfico clandestino de substâncias perigosas. Existem registos em vários serviços secretos de contrabando de urânio por parte do regime de Saddam – o qual, entretanto, tinha deixado de ser controlado. Uma coisa parecia certa: para Saddam, o desenvolvimento deste tipo de armas seria apenas uma questão de tempo e de astúcia, facilitado pelo descuido da comunidade internacional.

Para além das dezenas de violações materiais das resoluções do conselho de segurança da ONU (o tão afamado mas tão volátil “direito internacional”), e da noção clara de que Saddam não iria desistir das suas intenções megalómanas, estávamos na presença de um ditador brutal, responsável por milhares de execuções sumárias e por uma guerra que ceifou a vida a milhões de pessoas. Acresce ainda um ponto essencial: o regime ditatorial de Saddam estava implantado numa das mais explosivas regiões do mundo: o médio-oriente. O próprio Saddam patrocinava o terrorismo palestiniano e existiam indícios de ligações a outras redes terroristas – incluindo a Al Qaeda. Saddam incitou sempre o seu povo e os seus colaboradores, dentro e fora do Iraque, a detestar violentamente o Ocidente, na figura da sua nação mais representativa: os EUA. Era, portanto, um homem perigoso num ninho (leia-se ‘região’) de vespas – donde saíram os autores morais e materiais do 11 de Setembro e onde os fundamentalismos religiosos recrudesciam (embora o Iraque de Saddam mantivesse uma tradição secular, a aproximação ao «Islão», por parte de Saddam, era nos últimos anos, notória).

Eis, resumidamente, o cenário antes deste conflito. Perante ele, surgiram três grandes correntes: 1) nada fazer – Saddam não era supostamente uma ameaça para o mundo e o Iraque era um país soberano, embora servido por um regime abjecto; 2) Insistir no embargo, aumentando o controlo por parte dos inspectores - ou seja, apostando numa política de contenção; 3) Agir preventiva e pró-activamente, através do uso da força, derrubando um regime perigoso, abanando o doentio status quo do médio-oriente e lançando alicerces para a reforma da região – enviando, ‘en passant’, um sinal claro contra os terroristas e estados párias de todo o mundo.

Julgar que o conservador, politicamente pessimista, não passa de um tipo que se habitou contemplativamente a cruzar os braços perante o mal que o rodeia, adoptando um comportamento irresponsável de inacção aliado ao discurso da litania e do conformismo, é não só absurdo como revelador de ignorância. Ser pessimista, no contexto do conservadorismo, não é ser niilista ou totalmente descrente quanto às possibilidades de poder melhorar, ainda que pontual e localmente, a organização política e a vida em sociedade. O conservador nunca poderia defender uma política de inacção perante um perigo crescente, que punha em causa a segurança de pessoas, lançado o receio e o medo patológico – fins acessórios do terrorismo à escala global. Quando está em causa a defesa de valores e princípios essenciais – como sejam os da liberdade, da segurança ou da tolerância – contra a escalada do mal, o conservador sabe de que lado está. A sua coerência foi, por isso, total. O resto são conversas da treta.

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