O MacGuffin

segunda-feira, maio 19, 2003

O DR. LOUÇÃ, A FÉ ILUMINISTA E O CONTRA-ILUMINISMO

O puritano e douto Francisco Louçã defendia, há semanas (em artigo publicado no Público), a existência de uma ligação «maquiavélica» entre o neo-conservadorismo, Leo Strauss e a crítica ao Iluminismo

O que impressiona no Dr. Louçã é a sua total entrega à tirania das declarações definitivas. Se tivesse tido o cuidado de ler uma só linha sobre o que significou o Iluminismo e o contra-iluminismo, talvez tivesse mais calma em afirmar, peremptoriamente, o que afirmou.

Ninguém, no seu perfeito juízo, pode denegrir gratuitamente o Iluminismo ou apresentá-lo como a fonte de todos os males. Leo Strauss seguramente não o fez. Isaiah Berlin, que estudou esta matéria como poucos, soube, sabiamente, como era seu apanágio, separar o trigo do joio. Ao contrário do sugerido pelo grosseiro erro de interpretação do pensamento Berliniano por parte de Mark Lilla em “The Reckless Mind”, embora Berlin se tivesse oposto a algumas bases da Fé Iluminista, ele nunca perdeu a admiração e o sentimento de solidariedade para com os French Philosophes do Sec. XVIII, na sua luta contra o dogmatismo, as superstições, a ignorância e a opressão - concorrendo para libertar o homem das trevas clericais, metafísicas, políticas, etc. Agora, é da mais elementar honestidade intelectual não sonegar a crítica e a constatação das limitações empíricas do Iluminismo, bem como das consequências – lógicas e sociais – decorrentes do mesmo. Como foi apontado por Aron, Berlin ou Oakeshott (embora Oakeshott tivesse recuado até Descartes), o Iluminismo foi a origem e, com os anos, o catalisador do dogmatismo doutrinário da razão. Reconhecer que o contra-iluminismo foi, na sua essência, uma espécie de rebelião contra o monismo ou «pensamento único» - facto que, se calhar, até faria as delicias de Louçã – não é sinal de conivência ou adesão ao irracionalismo. É perceber que o contra-iluminismo foi essencial para combater a ideia de que, para as mais diversas questões morais e políticas, existe apenas uma única resposta e solução - todas elas compatíveis entre si e alcançáveis através da Razão. É óbvio que o Dr. Louçã nunca perceberá que, em boa parte, foi da matriz Iluminista que nasceu a inflexível visão «racionalista» que justificou, por exemplo, os gulags e os campos de concentração. Foi exactamente esta perspectiva da busca da «chave», através do «racionalismo» e da técnica, que serviram de base ao sacrifício de milhões de vidas humanas durante o Sec. XX, em nome da “Solução” e da “Perfeição”, levado a cabo por líderes políticos, apoiados, muitas vezes, por distintos conselheiros intelectuais. Foi essa presunção que levou Lenin a afirmar “os interesses do socialismo estão acima dos interesses do direito de auto-determinação das nações”.

A Fé Iluminista baseia-se, também, na ideia de que o predomínio do mal é sinónimo da inconsciência e não-autonomia morais. Para a Fé Iluminista, as boas escolhas e as boas acções são interpretadas moralmente como uma evidência da autonomia e consciência racional do seus agentes. Pelo contrário, as escolha erradas e nefastas, bem como as acções negativas e malévolas, são interpretadas como manifestações próprias de vitimas do mau «sistema», que as levaram a ser inconscientes. Se as pessoas causaram o mal, só pode ter sido consequência de uma organização política deficiente, que as corrompeu e as levou à irracionalidade e ao ressentimento. Se as pessoas agiram correctamente, eis, então, um sinal claro de que a racionalidade nas escolhas e na organização políticas prevaleceu. Como já devem ter reparado, tudo isto tresanda a Rosseau, Kant e até Marx, na medida em que na Fé Iluminista se estipula como factor exclusivo da formação da consciência e moralidade individuais a situação social das pessoas – o que colide com a ideia conservadora, que pressupõe ser sobretudo a consciência (autónoma) dos homens que determina e condiciona a sua condição social.

Há dias, observava a Dra. Ilda Figueiredo (deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido Comunista Português) a debitar as iniquidades do costume sobre a guerra no Iraque. A douta senhora declarava que o seu partido, desejava, ao contrário de Bush, a Paz e não a Guerra, considerando, para tal, que se deveriam “criar condições económicas e sociais” que “auxiliem os povos mais desfavorecidos” (estou a parafrasear), de modo a que os mesmo possam sossegar as suas intenções revoltosas e irracionais contra o Ocidente (conclusão minha). Eis a Fé Iluminista, em todo o seu esplendor: a Al Qaeda, o Sr. Saddam, o Sr. Kim, o Hamas e o Hezbollah existem porque o Ocidente, o Capitalismo e o Sr. Bush exploraram os seus povos, mantiveram-nos na penúria e não lhes deram a mão, permitindo, assim, a irracionalidade das suas acções - uma irracionalidade não-autónoma e, claro, inconsciente. A desigualdade material é, ela própria, um claro sinal de injustiça social institucionalizada e o rastilho para a irracionalidade - compreensiva, entenda-se - do mal. Por exemplo, o 11 de Setembro foi um grito mudo de revolta dos povos desfavorecidos – os quais, entregues à sua miséria e sofrimento, perderam a racionalidade e criaram o seu próprio código de conduta moral. Por detrás das lágrimas de crocodilo de muita boa gente no dia 12 de Setembro de 2001, escondia-se a ideia de que, no fundo, as vítimas tinham agredido o agressor. Coitados... Resumindo: se as pessoas não tiverem de lutar contra a pobreza e a discriminação, se não forem ignorantes, doutrinadas, doentes ou alvo de injustiça, se elas tiverem tempo para decidir a sua vida em tempo de paz, então certamente saberão agir em conformidade, ou seja, escolhendo o bem e sacudindo o mal.

A ingenuidade e a total falta de noção empírica da realidade são, quase sempre, patéticas. Não cabe na cabeça desta gente que: as acções malévolas podem ser fruto da racionalidade e da livre escolha; que o ser humano pode, autónoma e conscientemente, planear e perpetrar o mal; que, mesmo na presença de escolhas e organizações políticas acertadas e ditas «racionais», o imponderável (tão mal que a esquerda se dá com o imponderável...) e outros factores difusos podem dar cabo da festa. No fundo, a Dra. Ilda Figueiredo e o Dr. Louçã nunca perceberão que a natureza humana é propensa a defeitos, a deformações, a um leque de escolhas morais diversificadas e contraditórias, ou seja, que o mal é uma característica consciente e permanente da vida moral. Ou se restringem e controlam certas acções – sejam elas autónomas, não autónomas, conscientes ou inconscientes – ou está tudo tramado. Só pela via indirecta – da “criação de condições necessárias”, da solidariedade, da amizade fraterna e da benevolência – não se chega lá.

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