O MacGuffin

quinta-feira, abril 03, 2003

A GUERRA, I

Não deixa de ser desonesta a forma como muitos torcem o nariz a esta guerra com base no argumento de acharem despropositado e ridículo o anuncio da instituição de uma «democracia» em solo iraquiano. Alegam, para o efeito, que transposições deste calibre são perigosas e impossíveis, dada a idiossincrasia social e as diferenças culturais. A declaração é definitiva: a tentativa de criação de um modelo politico-social de inspiração ocidental, num país sem pingo de tradição liberal, é absurda. E, finalmente, que a mudança, a fazer-se (claro: “a fazer-se”), deveria vir de «dentro», levada a cabo de maneira gradual, lenta e «natural», nunca por «imposição» exterior.

Isto não só é desonesto como revela ingenuidade e preconceito. Por um lado, o mundo está suficientemente perigoso para termos de esperar, contemplativamente, que certos países (e o Iraque alberga um dos piores e mais sanguinários ditadores do Sec. XX) continuem a revisitar a idade média. Por outro lado, não creio que o povo iraquiano e os seus potenciais e actuais representantes sejam particularmente estúpidos ou totalmente idiotas. Observá-los como um bando de «bárbaros» incapazes de evolução e de reorganização é sinal de arrogância e de comodismo retórico. Bem como de falta de conhecimento. Em boa parte do Curdistão, nas chamadas «zonas de exclusão aérea», sob controlo anglo-americano, foi possível, desde 1991, criar um sistema multi-partidário baseado em instituições que nos remetem para o sistema democrático as we know it. Foi desenvolvido um sistema de ensino que não perde tempo com propaganda religiosa e rácica, como acontece na generalidade dos países árabes da região. É bom não esquecer que existe liberdade de culto no Iraque e que o ethos religioso nunca foi suficientemente castrador, ao ponto de esmagar e neutralizar uma futura e desejável reorganização política (dos poucos pontos positivos do regime de Saddam).

Sejamos honestos, de uma vez por todas. É óbvio que ninguém espera uma adaptação fidedigna de um modelo de organização política de tipo ocidental. Ninguém está à espera, nem sequer é essa a expectativa de quem está directamente envolvido no Iraque pós-guerra, de assistir a uma mimetização de sistemas e instituições, com a criação de Procuradorias Gerais de República, Tribunais de Contas, Bancos Centrais, etc. etc. Entre o sistema ditatorial e despótico de Saddam e o modelo liberal ocidental vai uma enorme distância, equivalente à que separa a qualidade literária de Mia Couto quando comparada com a do rato Mickey (absoluta vantagem para este último). Se assim é, existe um vasto leque de opções que poderão servir o povo iraquiano de uma forma como nunca o regime de Saddam o serviu, sem ser necessário entrar em histerismo quanto à perfeição e tipologia do sistema a implementar. Existe, contudo, uma condição sine qua non: o derrube de Saddam. Esse já está em marcha.

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