O MacGuffin

sexta-feira, março 21, 2003

BEM HAJA, SENHOR DOUTOR!

A semana passada, enquanto lia a crónica de Theodore Dalrymple na Spectator, lembrei-me do mais recente livro que li deste distinto physician: “Life At The Bottom”.

Theodore Dalrymple tem dedicado a sua vida a tratar e a reflectir sobre o crime e os «despojos» da sociedade, com os quais lida diariamente como médico em prisões e hospitais psiquiátricos. Quem pega num livro de Dalrymple, ou quem lê os seus artigos, mergulha num universo estranho onde o politicamente correcto foi banido. Existe uma total incompatibilidade entre as ideias base de Dalrymple para explicar as causas do crime, e as razões apontadas por governos (onde trabalham sobretudo tecnocratas mergulhados em estatística), sociologos e psicólogos da «situação». Dalrymple é aquilo a que se poderia denominar de anti-marxista convicto, na medida em que os seus textos renegam a fatalista inequação que estipula como factor da formação da consciência e moralidade individuais a situação social das pessoas. É a consciência dos homens que determina e condiciona a sua condição social, e não o contrário. Daí a recusa de Dalrymple, no terreno, em transferir automaticamente para terceiros a culpa de comportamentos desviantes.

Através de exemplos de experiências pessoais (de uma vida cheia), Theodore Dalrymple consegue ser convincente quando contraria a ideia difundida de que a desigualdade material é, ela própria, um claro sinal de injustiça social institucionalizada.

Num dos mais brilhantes textos incluídos em “Life At The Bottom”, Dalrymple pega no exemplo neo-zelandês. No inicio do Sec. XX, a Nova Zelândia era o mais próspero país à face da terra. Ao longo do Sec. XX, pouco ou nada se alterou: um nível de vida altíssimo, condições naturais e ambientais à beira da perfeição, um sistema de apoio social eficiente, um excelente sistema de ensino e um sistema judicial de fazer inveja. O Estado Providência neo-zelandês é dos mais antigos do mundo e o ethos do igualitarismo está presente nas ruas: é difícil diferenciar, pela maneira de falar e vestir, um neurocirurgião de um mecânico.

Reunidas estas condições – que fazem da sociedade neo-zelandesa uma sociedade próspera, democrática e igualitária – esperar-se-ia que, segundo o paleio liberal, a taxa de crimes e violência fosse marginal, irrisória, ridícula. Mas isso não aconteceu. Em termos relativos, a Nova Zelândia apresentou, ao longo de todo o Sec. XX, taxas de crime iguais e por vezes superiores às da sua nação-mãe: a Grã Bretanha. E nem o argumento de que o sistema judicial neo-zelandês vive obcecado com a punição, salva a honra do convento: a taxa de crimes violentos na Nova Zelândia subiu a um ritmo maior que as condenações.

Dalrymple não nega que a decisão de cometer um crime possa ter antecedentes de vária ordem. Contudo, como nos prova o exemplo neo-zelandês, esses antecedentes quase nunca se encontram nas condições de pobreza, desemprego ou desigualdade. Pelo contrário, as razões tendem, cada vez, a ser encontradas, nos países ocidentais, nas características da cultura, em especial da cultura popular, sobre a qual as pessoas constróem as suas ideias do mundo.

Não sei porquê, lendo o livro de Dalrymple, não posso deixar de recordar o mito do bom selvagem de Rousseau. E não resisto a extrapolar quando me recordo daqueles que defenderam, no aftermath do 9/11, que o terrorismo, à escala mundial, é uma espécie de reverberação do grito mudo dos espoliados e oprimidos do Terceiro Mundo. Assim como não resisto a lembrar aqueles que tentaram, e ainda tentam, explicar e contextualizar benevolentemente Bin Laden e Saddam Hussein... Leiam o senhor doutor, por favor.

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