A origem das espécies
O programa eleitoral do PSD foi apresentado. Está mal. Com a sua apresentação, um dos mais sólidos e intelectualmente honestos argumentos socialistas – o de que o PSD não tinha ideias, não tinha a mais pálida ideia do que queria para o país, daí não ter programa (só comparável, note-se, com o potente e seríssimo argumento do «salazarismo») -, deu o toque de finados. Uma chatice. Mas uma chatice que durou horas. À noite, na SIC Notícias, o Sr. Vítor Ramalho, militante do partido socialista, afirmou o óbvio (para ele e para o seu partido): o programa eleitoral do PSD é de uma «vacuidade confrangedora», afirmando-se triste por esse facto. Comungo do aborrecimento e da tristeza do Sr. Vítor Ramalho. O Sr. Vítor Ramalho aguardava, sonhava, suplicava por um programa riquíssimo, repleto de rasgos de génio, propostas revolucionárias e ideias libertadoras. O Sr. Vítor Ramalho desejava, afinal, o bem para o PSD. Todos sabemos que sim. Infelizmente, saiu-lhe a fava. Igualmente conturbado, a resvalar para a irritação (é um homem, de facto, com tendência para a gravidade), o Carlos Abreu Amorim também se mostrou descontente com a Dra. Ferreira Leite (caso, aliás, estranhíssimo). E o nosso Pedro Marques Lopes (presente no estúdio com Vítor Ramalho) também. Aliás, toda a gente o fez, embora, convenhamos, por razões distintas. Vítor Ramalho, ainda assolado pelo fantasma do «neo-liberalismo», que ele não faz a mínima ideia do que é (ninguém, em boa verdade, ainda o explicou convenientemente) mas jura a pés juntos que a besta está mais ou menos moribunda (mérito da crise «internacional»), viu no programa do PSD um regresso da desregulamentação e do assalto dos interesses privados ao erário público. Pedro Marques Lopes, pelo contrário, acha que o programa do PSD ficou muito aquém do desejável no que toca à «desestatização» da economia e da sociedade. Estavam, portanto, os dois, em directo, descontentes com o programa e com a Dra. Manuela Ferreira Leite – uma mulher que desilude todos os dias pelo menos um milhar e meio de portugueses. A SIC Notícias esteve, aliás, muito bem ao ter convidado para o debate um ferrenho e empedernido socialista – que nunca ousou em tempo e lugar algum despir, por um minuto, a jaqueta partidária que o envolve freiraticamente quando é convidado a «analisar» o país e o mundo – e um vero liberal (no bom sentido da palavra, convém dizer, que é termo que constitui anátema em Portugal) que por diversas vezes, nestes últimos meses, demonstrou «desilusão» (chamemos-lhe isso) pelo ideário da actual direcção do PSD. Com uma diferença que importa relevar: o Pedro é um homem que, não renegando o seu posicionamento ideológico, consegue reunir para qualquer debate essa nesga de imparcialidade que tenuemente qualquer pessoa intelectualmente honesta consegue sintetizar, ao passo que Vítor Ramalho faz questão de nunca se desprender do engajamento politico-partidário que o espartilha e que, na hora do discurso, descamba numa vacuidade analítica confrangedora (onde é que eu já ouvi isto?). Seja como for, estiveram todos muito bem. O programa eleitoral do PSD é nulo em rasgos de génio, parco em novidades e tímido no que respeita à concretização do seu inestimável desígnio: acabar com o dirigismo asfixiante do Estado.
Acrescento, apenas, dois ou três pormenores (que, tenho a certeza, não beliscam as desiludidas luminárias). Pela sua natureza, timing e contexto, qualquer programa eleitoral de qualquer partido é mais ou menos previsível. Ninguém em Portugal ousou ou ousará surpreender um só mortal com um programa eleitoral (o que é o programa do PS senão uma paupérrima amálgama que repisa promessas não cumpridas e um socialismo requentado para conquistar as franjas esquerdistas?). No fundo, ninguém, em Portugal, ousará «rasgar» o que quer que seja. Este é um país cuja tradição liberal é ínfima e cuja disposição para a mudança é inerte. É isso mesmo Carlos e Pedro: não se ganham eleições em Portugal dizendo que se vai acabar com as Golden Shares ou que se vai pôr em prática um sistema de protecção social misto (publico-privado) ou que se vai privatizar a Caixa Geral de Depósitos. Cairia o Carmo e a Trindade. Mais: a própria ideia de cortar a direito com o investimento público pode ser fatal. Não se trata do eleitorado ser maioritariamente de esquerda (também o é, de facto). Trata-se simplesmente de vivermos num país onde o ADN dos seus habitantes não comporta uma atmosfera de rarefacção do peso paternalista e dirigista do Estado, no qual o Estado Providencia (apesar de essencial) é uma espécie de altar onde todos vão rezar, pedir amor e protecção – porque, também é verdade, o que o Estado suga da economia e das famílias conduz a essa doentia interdependência. Esperar do programa eleitoral do PSD aquilo que ele não pode dar, dados os condicionalismos históricos, económicos e sociais, e a própria génese do seu povo, é que me parece confrangedor e potencialmente risível.
PS: Este post, publicado igualmente no 31 da Armada, deu lugar a uma discussão com o Pedro Marques Lopes. É seguir a contenda.
Acrescento, apenas, dois ou três pormenores (que, tenho a certeza, não beliscam as desiludidas luminárias). Pela sua natureza, timing e contexto, qualquer programa eleitoral de qualquer partido é mais ou menos previsível. Ninguém em Portugal ousou ou ousará surpreender um só mortal com um programa eleitoral (o que é o programa do PS senão uma paupérrima amálgama que repisa promessas não cumpridas e um socialismo requentado para conquistar as franjas esquerdistas?). No fundo, ninguém, em Portugal, ousará «rasgar» o que quer que seja. Este é um país cuja tradição liberal é ínfima e cuja disposição para a mudança é inerte. É isso mesmo Carlos e Pedro: não se ganham eleições em Portugal dizendo que se vai acabar com as Golden Shares ou que se vai pôr em prática um sistema de protecção social misto (publico-privado) ou que se vai privatizar a Caixa Geral de Depósitos. Cairia o Carmo e a Trindade. Mais: a própria ideia de cortar a direito com o investimento público pode ser fatal. Não se trata do eleitorado ser maioritariamente de esquerda (também o é, de facto). Trata-se simplesmente de vivermos num país onde o ADN dos seus habitantes não comporta uma atmosfera de rarefacção do peso paternalista e dirigista do Estado, no qual o Estado Providencia (apesar de essencial) é uma espécie de altar onde todos vão rezar, pedir amor e protecção – porque, também é verdade, o que o Estado suga da economia e das famílias conduz a essa doentia interdependência. Esperar do programa eleitoral do PSD aquilo que ele não pode dar, dados os condicionalismos históricos, económicos e sociais, e a própria génese do seu povo, é que me parece confrangedor e potencialmente risível.
PS: Este post, publicado igualmente no 31 da Armada, deu lugar a uma discussão com o Pedro Marques Lopes. É seguir a contenda.
2 Comentários:
Também eu fiquei surpreendido por os socialistas e os liberais portugueses não ficaram deslumbrados com o programa do PSD. Reparei exactamente no mesmo. Foi giro. Caricato, vá.
O problema dos programas eleitorais é que, tchan-tchan, são MacGuffins. Fala-se muito deles mas a sua real existência, que passa por um conteúdo com ideias e propostas, é dúbia. Estou naquela fatia que preferiria mais clareza e maior distinção ideológica entre PSD e PS. Aparentemente, aos eleitores assustam-nos as ideias claras e, por isso, percebo que os programas tenham que ser cautelosos. Mas tenho pena. Como, pelos vistos, a têm mais algumas pessoas. (Avaliando por alguns dos seus termos, diria até que você também tem.) Devemos resignar-nos em silêncio?
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