Alexis
Maria Filomena Mónica in Público (17/08/2008)
Reler Tocqueville
"À medida que envelhecemos, acontece-nos com cada vez mais frequência reler alguns livros, uma experiência simultaneamente negativa e positiva. Se a releitura nos retira o prazer da epifania, dá-nos, por outro lado, as delícias da memória do tempo e do local em que, pela primeira vez, ouvimos aquela voz. Para mim, Da Democracia na América será sempre equivalente a Canterbury Road, Oxford, Outono de 1972.
O regresso a um autor não deriva de termos gostado vagamente de uma obra, mas de termos a impressão, quase sempre acertada, de que ele passou a habitar-nos, contribuindo para nos transformar naquilo que somos. Há por aí muita gente, até perto de mim, a sussurrar que eu não gosto dos franceses. Pelo menos no que à literatura diz respeito - Tocqueville fica melhor aqui do que na ciência política - não é verdade.
Ao começar este livro, a preocupação de Tocqueville não era a América per se, mas a observação, na prática, de como funcionava uma democracia. A sua visita constituiu uma espécie de experiência laboratorial. Como o próprio diz (pág. 34): "Todo o livro que aqui se vai ler foi escrito sob a impressão de uma espécie de terror religioso produzido na alma do autor pela visão desta revolução irresistível que avança desde há tantos séculos através de todos os obstáculos, e que vemos ainda hoje avançar por entre as ruínas por ela feitas." A tensão, visível nas suas páginas, deriva da crença na inevitabilidade da democracia, ao mesmo tempo que o espírito do autor resistia a abandonar a admiração pelos melhores traços da aristocracia inglesa. De tal forma Tocqueville se sentia dilacerado que chegou a descrever-se como uma democrata por necessidade e um aristocrata por emoção.
O seu método era simultaneamente descritivo, analítico e filosófico. Por isso, não reparou nalguns aspectos - os barcos a vapor, as fábricas têxteis, as novas urbes - que deliciaram ou horrorizaram outros viajantes. O que o interessava era ver como viviam as pessoas, anotar aquilo em que acreditavam e ver como a máquina do Estado estava montada. Foi isso que registou no que designava os seus "cahiers portatifs".
A liberdade era, para Tocqueville, o valor supremo. Para ele, a república devia consistir num regime que, partindo da igualdade, garantisse a liberdade política e consequentemente o autogoverno e o exercício do poder limitado, opondo-se quer às ameaças do pensamento igualitário (Rousseau), quer às do conservadorismo autocrático (De Maistre). Em Da Democracia na América (págs. 69/70), defendia haver uma paixão legítima pela igualdade, mas advertia que, a seu lado, existia um outro sentimento, negativo, o qual consistiria na tentação, por parte dos mais fracos para rebaixar os mais fortes até ao seu nível, convidando desta forma os homens a preferir "a igualdade na servidão à desigualdade na liberdade".
Ao comparar os historiadores da antiguidade clássica e os da era moderna, Tocqueville alertava para os perigos de uma abordagem demasiado positivista. Referia a tendência para, nas democracias, se pensar que as sociedades obedeceriam a uma força superior: "Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam pois somente a alguns cidadãos o poder de agirem sobre o destino do povo, mas tiram também aos povos a faculdade de eles próprios modificarem a sua própria sorte, e sujeitam-nos assim ou a uma providência inflexível ou uma espécie de fatalidade cega. (...) Não lhes basta mostrar como aconteceram os factos; comprazem-se ainda em fazer ver que não podiam ter acontecido de outro modo" (pág. 472). É contra o determinismo, que minimiza o papel do homem, que se levanta, sendo curioso que o tenha feito antes de Marx ter apresentado ao mundo o seu Capital e muito antes de os departamentos universitários, de direita ou de esquerda, terem criado gerações de jovens treinados a considerar que só as estruturas contam.
Quando, em 1835, o livro saiu, revelou-se um sucesso, o que constituiu uma surpresa não só para o autor mas também para o editor, o qual apenas tinha impresso 500 cópias. Em França, todos os anos teve de se imprimir uma nova tiragem. Não tardaram a aparecer, nas livrarias, traduções em inglês e em alemão. Ignoro de quando data a primeira tradução em Portugal: a PORBASE diz-me ser de 1972, mas não sei se a informação é fidedigna.
Seria Tocqueville um pensador de direita ou de esquerda, um aristocrata nostálgico ou um democrata relutante, um deprimido ou um optimista? Foi tudo isto, em doses e momentos diferentes. Veja-se o que, a 15 de Dezembro de 1850, escrevia ao seu amigo, Louis de Kergolay: "Não tenho tradição, não pertenço a partido algum, não tenho outra causa se não as da liberdade e da dignidade humana." Ou, em Outubro de 1836, a Eugène de Stoffels: "Sempre considerei que a república era um governo sem contrapeso, que prometia sempre mais, mas dava sempre menos liberdade que a monarquia constitucional."
Tocqueville era alguém que, antes de outros, entendeu a carga emocional que o sentimento de injustiça acarretava. Temia a revolução e admirava a ordem; detestava, acima de tudo, a demagogia; não amava a humanidade, pelo menos quando o termo era usado de forma abstracta. Como estudioso da democracia, é inultrapassável. Ninguém, como ele, apontou as suas fraquezas e as suas forças; ninguém, como ele, teve a percepção do que um governo democrático pode conseguir ou pôr em perigo; ninguém, como ele, entendeu o dilema entre a igualdade e a liberdade. Apesar da admiração pelos EUA, sempre temeu o despotismo das maiorias. "Não há pois sobre a terra", argumentava, "autoridade tão respeitável em si mesma ou revestida de um direito tão sagrado, que eu quisesse deixá-la agir sem controlo e dominar sem obstáculos" (págs. 229/230). Não teria ficado admirado de ver que fora ali que a moderna praga do "politicamente correcto" tivera origem.”
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