Hardcore
Constança Cunha e Sá in Público, 17/04/2008
Um caso perdido
Ainda há uma semana, o eng. Ângelo Correia, num desabafo compreensível, considerava "totalmente insatisfatória" a situação do PSD, defendendo que o partido se devia dedicar "muito mais a pensar, a reflectir e a falar com o país". Aparentemente, o PSD fez-lhe a vontade: deixou cair as "disputas internas por razões menores" e mergulhou finalmente nas grandes questões nacionais e no diálogo com os portugueses. Antes de mais, mergulhou nas sondagens onde conseguiu mostrar que era possível ficar três pontos atrás dos mínimos deixados pelo dr. Santana Lopes, mostrando simultaneamente que se pode sempre descer mais baixo e que nunca se bate no fundo porque abaixo deste falso limite florescem infinitas possibilidades. E, como se viu, de então para cá, o PSD tem dado alguns passos gigantescos nesse longo e auspicioso caminho que, de repente, se lhe abriu pela frente.
Na Madeira, falando directamente ao país, o dr. Menezes reclamou entusiasticamente uma "autonomia sem limites" para a região que acabou por se transformar, conforme foi explicado, mais tarde, numa "autonomia sem limites com alguns limites" - um conceito um pouco confuso que o PSD irá, com certeza, esclarecer quando lhe parecer oportuno. Na mesma altura, e sem esquecer um assunto que está na ordem do dia e preocupa grande parte dos portugueses, o dr. Menezes defendeu a necessidade de uma nova Constituição - dado que já "passaram" 35 anos sobre a que está em vigor e as "realidades constitucionais" devem estar abertas à novidade, seguir as orientações da moda e acompanhar os ditames da juventude. Para além disso, prescrevem. Em qualquer país civilizado, como a Inglaterra, por exemplo, constituições velhas como a nossa, que fazem parte de um passado longínquo, são expeditamente atiradas para o lixo, dando lugar à modernidade e à consagração dos novos direitos e dos novos deveres que se impõem aos cidadãos e ao Estado. Por cá, o dr. Menezes vai fazendo o que pode, tentando modernizar o país com propostas de fundo que têm a superior vantagem de não se poderem realizar.
Já sabíamos que se o PSD, por milagre, vier a formar Governo tenciona "desmantelar" o Estado em meia dúzia de meses, impedir o fecho de qualquer organismo público durante quatro anos, tirar a publicidade à RTP (uns quilómetros de auto-estradas que ficam por fazer!), sujeitar a política fiscal à realidade espanhola, reunir-se semanalmente com a Fenprof e outras habilidades avulsas. Ficamos agora a saber que se, por uma chuva de milagres, o PSD tiver consigo dois terços dos deputados manda os pactos de regime às ortigas (como, aliás, já mandou) e se entretém a fazer novas constituições, consoante o humor do dia e o clima das estações.
Entretanto, no meio deste vendaval de propostas, algures entre a nova Constituição e a harmonização fiscal com Espanha, surgiu a Fernanda Câncio, a reboque de uma produtora externa que vai trabalhar com a RTP. Num primeiro momento, o caso ficou nas mãos de Agostinho Branquinho, um telespectador pouco atento, içado à categoria de porta-voz para o audiovisual. Expedito e sem conhecimentos que lhe atrapalhem o fulgor das iniciativas, Agostinho Branquinho enviou, de imediato, um requerimento à estação, pedindo explicações sobre esta "escandalosa" e "pornográfica" contratação. Aparentemente, o porta-voz do PSD não sabia que a RTP costuma contratar produtoras externas, nem conhecia o trabalho televisivo da Fernanda Câncio. Mas esse alegre desconhecimento já faz parte da ementa diária do PSD.
Uns dias depois, na Madeira, Rui Gomes da Silva, com o talento que se lhe reconhece, abriu novos horizontes à questão da "pornografia". Para o caso dos portugueses não perceberem que o PSD estava a dialogar com eles e a falar abertamente ao país, o mesmo dirigente social-democrata aproveitou uma manhã de sábado para esclarecer devidamente o assunto. Escusado será dizer que, ao fazê-lo, proporcionou um esclarecimento bastante maior sobre si próprio e sobre o partido que compreensivelmente o acolhe. Ultrapassando Branquinho, a uma velocidade estonteante, Rui Gomes da Silva foi directo ao que lhe pareceu essencial, afirmando que a RTP não podia contratar uma jornalista que tinha "um relacionamento com o primeiro-ministro". Até porque, na sua imensa sabedoria, o vice-presidente do PSD sente-se em condições de garantir que a dita contratação foi feita "única e exclusivamente por razões que são de todos conhecidas". Pouco importa que essas "razões que são de todos conhecidas" não sejam mais do que ditos e mexericos que circulam no meio onde se move a actual Comissão Política Nacional do PSD que, segundo Ribau Esteves, manifestou já "a sua total solidariedade e apoio" a Rui Gomes da Silva. Faltava este pequeno e elucidativo pormenor para se ter uma ideia exacta das prioridades que orientam a direcção do partido.
Numa altura em que, entre outras coisas, se fala de recessão e se discutem as repercussões internas de uma crise internacional, o PSD dedica o melhor do seu tempo a falar da contratação da Fernanda Câncio, escolhendo como alvo de ataque os seus "relacionamentos" privados. E, como se isso não bastasse, ainda acha que está a denunciar um "escândalo" nacional, sem perceber que o verdadeiro escândalo nacional é ver o maior partido da oposição sacrificar a política às improvisações do momento e deixar que esta se preste às rasteiras do mexerico. Da nova Constituição à "autonomia sem limites", passando pela Fernanda Câncio, é o mesmo PSD que se reflecte em todo o seu esplendor: um PSD superficial e rasteiro que é capaz de tudo e que não recua perante nada. Quando Rui Gomes da Silva, referindo-se à vida privada de uma jornalista, com provas dadas, garante que "estes factos, incomodem ou não quem quer que seja, continuarão a ser assumidos e ditos pela direcção do PSD", não percebe que esses "factos" dão cabo de um partido e incomodam principalmente quem costumava votar no PSD.
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