O MacGuffin: Meiguinhos

quinta-feira, março 20, 2008

Meiguinhos

Constança Cunha e Sá, in Público (13/03/2008)

Tempos de antena

Confesso que nunca fui apologista das chamadas reportagens intimistas que supostamente mostram o "outro lado" dos políticos através dos seus pequenos hábitos e das suas pequenas revelações. O líder da oposição em família, com a namorada a chamar-lhe "meiguinho", ou o primeiro-ministro, num dia de chuva, a dissertar sobre a "melancolia" que lhe desperta o "nevoeiro" de Lisboa são ficções desinteressantes que servem, antes de mais, os interesses da propaganda e as tácticas em que se enredam as agências de comunicação. De uma forma geral, dispenso estas encenações sobre a intimidade de quem nos governa ou de quem nos pretende vir a governar. Não me interessa a vida privada das figuras públicas, a forma como se relacionam com os filhos, o apoio que têm das mulheres, o carinho que lhes dedicam os pais ou mesmo os desabafos premeditados com que invariavelmente "humanizam" a sua "distante" imagem pública.
Aliás, a distinção entre o político e o homem que este tipo de reportagem procura mostrar é meramente artificial: o homem que se pretende expor não é mais do um simples simulacro do político que se quer promover. O resultado final deste equívoco chega a ser, por vezes, confrangedor. Como se viu, na semana passada, com os "tempos de antena" apresentados pela SIC sobre a vida pessoal do eng. Sócrates (que ele, e bem, não exibiu) e a irreprimível "espontaneidade" do dr. Menezes, visto em família, numa espécie de Big Brother à moda de Gaia, com direito à exposição dos filhos, dos pais e da namorada e às aventuras do seu dia-a-dia: dos treinos de futebol e dos almoços em família até à apoteose final de uma ida à barbearia onde ele, qual pintainho da política, se deixa filmar de cabeça molhada, no momento em que lhe aparam o seu escasso cabelo, enquanto um engraxador lhe puxa o brilho aos sapatos e se regista a ausência inexplicável de uma manicura que lhe trate convenientemente das unhas.
Ao contrário do que diz Alcides Vieira, director de informação da SIC, estas reportagens estão longe de mostrar "conversas soltas e desprendidas" por contraponto às entrevistas mais "teatralizadas" que se fazem em estúdio. Mesmo quando estas últimas são de tal forma "teatralizadas" e "preparadas ao milímetro" que acabam por se transformar num insuportável exercício de subserviência ao poder como aconteceu na última entrevista da SIC (e do Expresso) ao eng. Sócrates, onde os temas estavam combinados à partida e os jornalistas se sentiram na obrigação de pedir desculpa por fazerem uma única pergunta que podia incomodar o primeiro-ministro.
A "falta de autenticidade" do eng. Sócrates ou a programada "espontaneidade" do dr. Menezes são consequências naturais deste tipo de encenações que confirmam apenas que eles são políticos como os outros, dependentes da propaganda e de várias assessorias. O que me incomodou nas reportagens apresentadas pela SIC não foi tanto a "afeição pela melancolia" do primeiro-ministro ou as tácticas de futebol do líder da oposição: foi o triste papel a que se prestou a jornalista, deslumbrada com a sua própria irrelevância e com a inebriante proximidade do poder. Diante do eng. Sócrates, Raquel Alexandra não saiu literalmente do átrio a que o primeiro-ministro a prendeu. Não fez uma pergunta relevante, não foi capaz de uma observação pertinente, não conseguiu sequer fingir a conversa "solta e descontraída" de que tanto se orgulhava o seu director.

Subjugada pela presença do primeiro-ministro, Raquel Alexandra, com os olhos brilhantes de emoção, contemplou, em silêncio, a sua "bonita" caneta Parker, ouviu embevecida a história sobre o seu Zangado de peluche e embatucou com a "profundidade" das suas reflexões existenciais. Sentada, no carro, a seu lado, a jornalista da SIC deixou o eng. Sócrates entregue a si próprio, discorrendo sozinho sobre os seus acessos de melancolia, os seus dias de nevoeiro e as suas necessidades contemplativas. Quando o primeiro-ministro, com alguma dificuldade, chega a Cesário Verde, ao Sentimento de Um Ocidental e a essa "absurda necessidade de sofrer" provocada pela neblina e pelo cheiro da maresia que se estende sobre a Baixa lisboeta e o coração do poeta, Raquel Alexandra, exibindo a sua fina sensibilidade, pergunta-lhe baixinho se ele é "um homem romântico"; e, mais à frente, para não perder o fio à meada, tenta saber se ele costuma "fazer poemas". No resto (que foi bastante) a jornalista fez gala de um sentimentalismo piegas, reduzindo a acção política do Governo aos estados de alma do primeiro-ministro. Mais uma vez, o "lado humano" do eng. Sócrates vem em socorro da sua política, apoiado na propaganda oficial e na vacuidade da jornalista.
Se a artificialidade do eng. Sócrates suscitou os comentários do costume, a subserviência de Raquel Alexandra passou quase desapercebida. Salvo raríssimas excepções, ninguém estranhou este indecoroso tempo de antena que a SIC proporcionou. É natural! O jornalismo português está assim: solene e engravatado, rendeu-se à propaganda do Governo, às vantagens do poder e às necessidades da actual maioria. E depois ainda fala de um clima de claustrofobia!

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