Uma opinião
Esta Lei Eleitoral Deve Ir para o Lixo
por Maria Filomena Mónica
in Público, Sexta-feira, 21 de Janeiro de 2005
"Politica, filosófica e temperamentalmente, sou centralizadora. Num caso, todavia, o da lei eleitoral, a minha posição altera-se. Porque diante da urna, ninguém, melhor do que o próprio, sabe o que lhe convém. Há anos que os grandes partidos, com destaque para o PS, têm vindo a prometer a reforma da lei eleitoral, mas, chegado o momento, retraem-se. Em 2001, ainda ouvi alguns socialistas falar destes planos. Foi o que se viu. Hoje, penso que será necessário um maremoto político para que algo aconteça.
A regra da proporcionalidade, a interdição de candidatos independentes, a existência de grandes círculos, a confecção de listas pelos secretários-gerais - tudo coisas infelizmente inscritas na Constituição - têm de terminar. Nada e criada num país em que a política era vista como uma actividade nojenta - com o argumento de que o dr. Salazar, que sabia o que queria e para onde ia, se dedicava a administrar a Nação - o ataque ao actual sistema parecia-me inoportuno. O escrúpulo não tem razão de ser. Aliás, o facto de a maioria das pessoas da minha idade não estarem dispostas a denunciar o status quo faz com que os jovens, nascidos depois de 1974, tendam a afastar-se da participação num regime que consideram oligárquico, acéfalo e corrupto.
Não são apenas os jovens que estão zangados. Os pais tão pouco vêem interesse em sair de casa, a fim de escolher entre as centenas de desconhecidos que os líderes incluíram nas listas, remunerando com um "tacho" os servos que exibiram a sua obediência. O desencanto com o regime cresce. Em 1975, um momento, reconheço-o, excepcional, a abstenção foi de oito por cento. Nos anos 1980, mais de quatro quintos dos portugueses ainda ia votar. Nas últimas eleições, a taxa de abstenção foi já de 39 por cento. Sei que, por toda a Europa, algo de semelhante se está a passar, mas não a esta velocidade: Portugal possui o recorde do aumento na taxa de crescimento da abstenção.
Ao falarmos de leis eleitorais, estamos a tocar em duas questões: quem pode votar e como se vota. A primeira está resolvida desde 1974, o momento em que, pela primeira vez, se pode falar, com rigor, da instauração do sufrágio universal. O problema central reside hoje na forma como se vota. Com receio de que o norte se inclinasse para a reacção e que o sul ficasse vermelho, os constituintes optaram por uma lei - baseada em grandes círculos eleitorais e em listas confeccionadas pelas cúpulas partidárias - que retira poder ao eleitor. Ora, eu não desejo delegar no eng. Sócrates a possibilidade de escolher quem me representa no Parlamento. Quero ter o "meu" deputado, a quem possa apresentar as minhas queixas e, caso pense que ele nada fez de notável, mandar para casa na eleição subsequente.
Infelizmente, a maioria dos Professores de Direito Constitucional considera ser este o menos mau dos sistemas. Há mesmo quem defenda que sempre assim se votou em Portugal. Deixo de lado o caso do Estado Novo, durante o qual havia eleições, mas não liberdades, e o da I República, em que as eleições eram de tal forma viciadas que a abstenção acabou, em 1925, por chegar aos 86 por cento. A Monarquia Constitucional, ou seja o regime que surgiu após a Revolução de 1820, experimentou diversos sistemas eleitorais. Vale a pena relembrar alguns. Durante a primeira metade de oitocentos, votava-se de forma indirecta, ou seja, os eleitores - apenas aqueles que tinham um certo nível de rendimentos - votavam num senhor, o notável, o qual, em seguida, votava num deputado. Isto deu lugar a grandes polémicas, as quais só terminaram quando o governo decretou, em 1851, o chamado "Acto Adicional" à Carta, que consagrou as eleições directas.
Não é aqui o local para apresentar uma enumeração exaustiva das leis eleitorais da Monarquia. Quero tão só chamar a atenção para a importância da lei de 1859, que consagrou os chamados círculos uninominais. Em vez de grandes unidades geográficas, permeáveis à vontade do centro, passaram a existir pequenos círculos, apenas com um deputado, o que dava algum poder - por mínimo que fosse - aos camponeses que, por esse país fora, iam votar. Tudo se tornou mais claro quando, em 1878, Fontes Pereira de Melo - o homem que, em 1859, sob pressão do rei D. Pedro V, reformara o sistema - resolveu dar o voto a todos os portugueses. É verdade que estes eram pobres, analfabetos e rudes, mas, em conjunto, as duas leis deram-lhes mais influência do que a que tinham tido ou do que a que passariam a ter, quando, em 1884, 1895 e 1901, as leis de novo foram alteradas. Sei que existem argumentos - enfadonhamente apresentados ao longo dos anos - contra os chamados "políticos de campanário", mas não me convencem.
Em Portugal, todas as reformas surgem sempre de cima. Num país em que a primeira Constituição foi "outorgada", isto é, oferecida, por um monarca ausente (D. Pedro IV), num país em que a melhor lei eleitoral, a de 1859, foi imposta por um rei "entrangeirado" (D. Pedro V), num país em que as mudanças de regime surgiram sempre através de golpes militares, não temos motivo para esperar que a reforma eleitoral se venha a realizar de forma pacífica. Nem que os futuros governantes sejam melhores do que os de hoje.
Vigorava ainda o II Reich na Alemanha quando um sociólogo alemão, Max Weber, se dedicou a reflectir sobre a melhor forma de se conseguirem governos eficazes. A democracia não o interessava particularmente. Segundo ele, a principal vantagem do sufrágio universal consistia na capacidade de gerar chefes políticos mais eficientes do que as cliques que se reclamavam dos favores do Kaiser. Hoje, o problema é outro. Só a reforma da lei eleitoral permitirá melhorar a classe dirigente. É por isso que os políticos actuais resistem à mudança. Ninguém gosta de competição, muito menos quem sabe que vai perder."
por Maria Filomena Mónica
in Público, Sexta-feira, 21 de Janeiro de 2005
"Politica, filosófica e temperamentalmente, sou centralizadora. Num caso, todavia, o da lei eleitoral, a minha posição altera-se. Porque diante da urna, ninguém, melhor do que o próprio, sabe o que lhe convém. Há anos que os grandes partidos, com destaque para o PS, têm vindo a prometer a reforma da lei eleitoral, mas, chegado o momento, retraem-se. Em 2001, ainda ouvi alguns socialistas falar destes planos. Foi o que se viu. Hoje, penso que será necessário um maremoto político para que algo aconteça.
A regra da proporcionalidade, a interdição de candidatos independentes, a existência de grandes círculos, a confecção de listas pelos secretários-gerais - tudo coisas infelizmente inscritas na Constituição - têm de terminar. Nada e criada num país em que a política era vista como uma actividade nojenta - com o argumento de que o dr. Salazar, que sabia o que queria e para onde ia, se dedicava a administrar a Nação - o ataque ao actual sistema parecia-me inoportuno. O escrúpulo não tem razão de ser. Aliás, o facto de a maioria das pessoas da minha idade não estarem dispostas a denunciar o status quo faz com que os jovens, nascidos depois de 1974, tendam a afastar-se da participação num regime que consideram oligárquico, acéfalo e corrupto.
Não são apenas os jovens que estão zangados. Os pais tão pouco vêem interesse em sair de casa, a fim de escolher entre as centenas de desconhecidos que os líderes incluíram nas listas, remunerando com um "tacho" os servos que exibiram a sua obediência. O desencanto com o regime cresce. Em 1975, um momento, reconheço-o, excepcional, a abstenção foi de oito por cento. Nos anos 1980, mais de quatro quintos dos portugueses ainda ia votar. Nas últimas eleições, a taxa de abstenção foi já de 39 por cento. Sei que, por toda a Europa, algo de semelhante se está a passar, mas não a esta velocidade: Portugal possui o recorde do aumento na taxa de crescimento da abstenção.
Ao falarmos de leis eleitorais, estamos a tocar em duas questões: quem pode votar e como se vota. A primeira está resolvida desde 1974, o momento em que, pela primeira vez, se pode falar, com rigor, da instauração do sufrágio universal. O problema central reside hoje na forma como se vota. Com receio de que o norte se inclinasse para a reacção e que o sul ficasse vermelho, os constituintes optaram por uma lei - baseada em grandes círculos eleitorais e em listas confeccionadas pelas cúpulas partidárias - que retira poder ao eleitor. Ora, eu não desejo delegar no eng. Sócrates a possibilidade de escolher quem me representa no Parlamento. Quero ter o "meu" deputado, a quem possa apresentar as minhas queixas e, caso pense que ele nada fez de notável, mandar para casa na eleição subsequente.
Infelizmente, a maioria dos Professores de Direito Constitucional considera ser este o menos mau dos sistemas. Há mesmo quem defenda que sempre assim se votou em Portugal. Deixo de lado o caso do Estado Novo, durante o qual havia eleições, mas não liberdades, e o da I República, em que as eleições eram de tal forma viciadas que a abstenção acabou, em 1925, por chegar aos 86 por cento. A Monarquia Constitucional, ou seja o regime que surgiu após a Revolução de 1820, experimentou diversos sistemas eleitorais. Vale a pena relembrar alguns. Durante a primeira metade de oitocentos, votava-se de forma indirecta, ou seja, os eleitores - apenas aqueles que tinham um certo nível de rendimentos - votavam num senhor, o notável, o qual, em seguida, votava num deputado. Isto deu lugar a grandes polémicas, as quais só terminaram quando o governo decretou, em 1851, o chamado "Acto Adicional" à Carta, que consagrou as eleições directas.
Não é aqui o local para apresentar uma enumeração exaustiva das leis eleitorais da Monarquia. Quero tão só chamar a atenção para a importância da lei de 1859, que consagrou os chamados círculos uninominais. Em vez de grandes unidades geográficas, permeáveis à vontade do centro, passaram a existir pequenos círculos, apenas com um deputado, o que dava algum poder - por mínimo que fosse - aos camponeses que, por esse país fora, iam votar. Tudo se tornou mais claro quando, em 1878, Fontes Pereira de Melo - o homem que, em 1859, sob pressão do rei D. Pedro V, reformara o sistema - resolveu dar o voto a todos os portugueses. É verdade que estes eram pobres, analfabetos e rudes, mas, em conjunto, as duas leis deram-lhes mais influência do que a que tinham tido ou do que a que passariam a ter, quando, em 1884, 1895 e 1901, as leis de novo foram alteradas. Sei que existem argumentos - enfadonhamente apresentados ao longo dos anos - contra os chamados "políticos de campanário", mas não me convencem.
Em Portugal, todas as reformas surgem sempre de cima. Num país em que a primeira Constituição foi "outorgada", isto é, oferecida, por um monarca ausente (D. Pedro IV), num país em que a melhor lei eleitoral, a de 1859, foi imposta por um rei "entrangeirado" (D. Pedro V), num país em que as mudanças de regime surgiram sempre através de golpes militares, não temos motivo para esperar que a reforma eleitoral se venha a realizar de forma pacífica. Nem que os futuros governantes sejam melhores do que os de hoje.
Vigorava ainda o II Reich na Alemanha quando um sociólogo alemão, Max Weber, se dedicou a reflectir sobre a melhor forma de se conseguirem governos eficazes. A democracia não o interessava particularmente. Segundo ele, a principal vantagem do sufrágio universal consistia na capacidade de gerar chefes políticos mais eficientes do que as cliques que se reclamavam dos favores do Kaiser. Hoje, o problema é outro. Só a reforma da lei eleitoral permitirá melhorar a classe dirigente. É por isso que os políticos actuais resistem à mudança. Ninguém gosta de competição, muito menos quem sabe que vai perder."
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