Inconstitucionalidades
Jorge Miranda in Público 14/01/2009
Ainda mais inconstitucionalidades no Estatuto dos Açores
1. A Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro, veio aprovar aquilo a que chama a terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, mas que, na realidade, corresponde, antes, a um estatuto novo, tais as mudanças significativas que contém - umas decorrentes da revisão constitucional de 2004, outras muito para além desta e com normas manifestamente inconstitucionais. Vou enunciá-las e justificar em termos muito sintéticos por que entendo ocorrerem tais inconstitucionalidades: não só aquelas para que o Presidente da República alertou o Parlamento mas ainda algumas mais, de não menor gravidade.
2. O art. 4.º, n.º 4, estabelece que a bandeira da região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na região e dos órgãos de governo próprios ou de entidades por ele tuteladas, bem como nas autarquias locais dos Açores.
Esta norma, caso não sofra uma interpretação restritiva e venha a abranger as unidades militares sediadas nos Açores, viola os princípios da soberania e da unidade do Estado. As Forças Armadas apenas podem servir a Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República e da independência, unidade e integridade de Portugal (art. 11.º, n.º 1 da Constituição). Nem sequer em Estados federais, como os Estados Unidos ou o Brasil, alguém imaginou colocar as bandeiras estaduais ao lado da bandeira federal em instalações militares. Também contende com a Constituição impor a bandeira regional nos edifícios dos tribunais, que são órgãos de soberania.
3. O art. 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), prevê a cooperação externa com entidades regionais estrangeiras.
Fala-se, porém, em política própria e não se acrescenta aquilo que consta da parte final do art. 227.º, n.º 1, alínea u) da Constituição: "de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa". Somente integrando a norma estatutária com a norma constitucional se evitará a inconstitucionalidade.
4. O art. 7.º, n.º 1, alínea o), prevê a criação de provedores sectoriais regionais.
Esta norma viola o princípio da unicidade do provedor de Justiça, órgão do Estado (art. 23.º da Constituição). Nem este princípio tem impedido a existência nos Açores de uma delegação dos serviços da Provedoria.
5. O art. 63.º, n.º 2, alínea g), dá à Assembleia Legislativa Regional o poder de legislar sobre comunicação social, incluindo o regime financeiro.
Ora, esta matéria pertence ao domínio dos direitos, liberdades e garantias, domínio da reserva dos órgãos de soberania (art. 165.º, n.º 1, alínea b), insusceptível de qualquer autorização legislativa regional (art. 227.º, n.º 1, alínea b). Não foi respeitada a decisão do Tribunal Constitucional na fiscalização preventiva.
6. O art. 66.º atribui à Assembleia Legislativa Regional competência para legislar sobre matéria da ordem e segurança pública.
Só não será inconstitucional (por infracção do art. 164.º, alínea n) da Constituição) se não abranger as forças de segurança, cuja organização é única para todo o território nacional (art. 272.º, n.º 4).
7. O art. 144.º determina que os órgãos do governo regional sejam ouvidos pelo Presidente da República antes da dissolução da Assembleia Legislativa.
A inconstitucionalidade, como foi tantas vezes salientado ao longo de semanas, está na obrigação de o Presidente ouvir mais sujeitos constitucionais do que aqueles a que está vinculado pela Constituição: o Conselho de Estado e os partidos representados na Assembleia (art. 234.º, n.º 1). E em ter de ouvir mais sujeitos do que aqueles que tem de ouvir aquando da dissolução da Assembleia da República (art. 135.º, alínea l).
É certo que há uma norma geral de audição dos órgãos de governo regional pelos órgãos de soberania relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas (art. 225.º, n.º 2). Mas, como qualquer jurista sabe, a norma geral cede perante a norma especial (art. 234.º, n.º 1).
À incongruência acresce o absurdo de o Presidente ter de ouvir a própria Assembleia que encara dissolver... Seria como um professor ter de perguntar a um aluno, num exame, se concorda com a sua reprovação...
8. O art. 119.º regula uma "audição qualificada" dos órgãos do governo regional relativamente a determinadas iniciativas legislativas e regulamentares. Assim, no caso de o parecer destes órgãos ser desfavorável ou de não aceitação das alterações propostas pelo órgão de soberania em causa, constitui-se uma comissão bilateral, com número igual de representantes dos órgãos de soberania e dos órgãos de governo próprio, para formular uma proposta alternativa, no prazo de trinta dias, salvo acordo em contrário. Decorrido esse prazo, o órgão de soberania decide livremente.
Institui-se aqui, em conjugação com o art. 14.º, n.º 2, um procedimento e um conjunto de vinculações dos órgãos de soberania não previstos e, portanto, não consentidos pela Constituição.
9. Com a revisão constitucional de 2004 tinha-se pensado que as querelas à volta da autonomia político-administrativa regional tinham ficado ultrapassadas e que se entraria numa fase de regionalismo cooperativo. Infelizmente, não é isso que parece estar a acontecer.
O pior que poderia acontecer à estabilidade institucional da República em época tão difícil como aquela em que nos encontramos e à própria autonomia seria manter uma dialéctica constante de revisão constitucional e inconstitucionalidade: primeiro, alargar-se a autonomia por meio de uma lei de revisão; depois, contudo, forçar-se a mão aprovando uma lei ordinária com múltiplas inconstitucionalidades; a seguir, para obviar a estas, reclamar-se nova revisão; e assim sucessivamente.
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