Cosmovisões
Há duas horas atrás, em entrevista à SIC, o primeiro-ministro, comentando a decisão do Presidente da República sobre a data das eleições (e à não simultaneidade de autárquicas e legislativas), reafirmou a sua concordância com a mesma e aproveitou para lançar mais uma daquelas elegantes farpas políticas, bem ao jeito do tipo de gente que actualmente domina o aparelho do Partido Socialista: “era o Salazar que falava em custos e em poupar quando se tratava de apostar na Democracia” (parafraseio).
Esta tentativa, recorrente, do PS e do governo, de tentar colar a imagem e o ideário de Manuela Ferreira Leite ao avarento e retrógrado homem de Santa Comba Dão não é apenas tola: é simbólica. A grande diferença entre o PS e o PSD, e entre José Sócrates e Manuela Ferreira Leite, é cada vez mais clara. O actual primeiro-ministro continua a desvalorizar e a menosprezar o actual cenário macroeconómico e financeiro do país. Manuela Ferreira Leite já percebeu que Portugal está num estado de pré-falência incompatível com mega investimentos estatais e que é na economia real (a das pequenas e médias empresas) que deve ser administrada a injecção de adrenalina (porque só aqui se poderão colher frutos a longo prazo).
José Sócrates continua a dar sinais de que, no que toca ao Estado, o dinheiro pode esticar-se infinitamente porque, para ele, o Estado é magnânimo, omnipotente e, no limite, sacrossanto. Esta mentalidade, que o aproxima infinitamente mais de Salazar do que Manuela Ferreira Leite, é típica de quem nunca teve um contacto mínimo com a economia e o país real. O que não deixa de ser previsível. Não nos esqueçamos que Sócrates é um produto genuíno do carreirismo político à portuguesa: provinciano, de origens humildes, iniciou a sua ligação aos partidos na JSD da Covilhã; em 1981 filiou-se no PS; foi deputado, pela primeira vez, em 1987; integrou o Secretariado do Partido Socialista em 1991; integrou o governo de António Guterres em 1995, passando de Secretário de Estado Adjunto do Ministro do Ambiente a Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território (já no segundo governo de Guterres), tendo, pelo meio, sido Ministro-Adjunto do Primeiro-Ministro. No meio de tão frenética actividade política, teve tempo para obter um diploma de bacharelato em engenharia civil no ISEC, inscreveu-se em Direito mas abandonou o curso e, finalmente, obteve a licenciatura em engenharia civil aos 40 anos. Toda a carreira política e «profissional» de Sócrates foi feita ora nos partidos políticos, ora no Estado, mais concretamente no seu braço executivo e em cargos não propriamente técnicos (ou seja, de nomeação política). Por entre tachos, conhecimentos, amiguismos, cartões partidários e, obviamente, alguma inteligência e uma boa dose de «ferocidade», José Sócrates venceu na vida e chegou onde chegou.
Mesmo admitindo que o principal interesse do PSD em juntar os dois actos eleitorais seria o da (pouco) provável contaminação do voto de protesto entre legislativas e autárquicas, chamar à colação o suposto pseudo-argumento do PSD relativo aos «custos» por parte do primeiro-ministro (e pondo de parte a farpa patetinha do salazarismo), confirma a diferença de cosmovisões entre Sócrates e Ferreira Leite: de um lado, um homem para quem o dinheiro e os meios foram surgindo, e cuja proveniência e sustentabilidade nunca lhe terão suscitado grande interesse ou estudo (no caso concreto, afinal de contas que peso teriam mais um euro aqui e um cêntimo acolá?); do outro, uma académica brilhante, professora universitária, estudiosa de Economia e Finanças Públicas (com artigos e ensaios publicados), que desempenhou inúmeros cargos de natureza técnica na administração pública. É natural que Manuela Ferreira Leite compreenda onde Portugal está metido e o que significa gerir meios escassos e contas publicas com implicações concretas na vida das pessoas. Oxalá a sua visão «avarenta» ganhe um lugar. É altura de Portugal perceber que o fatinho Boss e o Magalhães debaixo do braço não se compadecem com sapatos sem sola, meias rotas e saloiice exuberante.
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