O MacGuffin: A arte da crónica (3)

sábado, maio 10, 2008

A arte da crónica (3)

A única natureza é a humana por Miguel Esteves Cardoso

Verão. Não é só calor – é a luz. Odeio a Luz. Como toda a natureza, aliás. Quero que ela exista, claro, mas longe de mim. As únicas coisas interessantes neste mundo são as que as pessoas fizeram. O mar, que até tem uma certa graça, nada é ao pé do que se escreveu acerca dele. Até a palavra mar é melhor que o mar em si. As paisagens podem ser impressionantes, para aí durante trinta segundos, depois de três horas de viagem de carro, mas são entediantes e inferiores às pinturas, às fotografias, às descrições. As rochas e as montanhas são uma seca, comparadas (se é que, sequer, podem comparar-se) às construções humanas, às catedrais, às cabanas, às casas.

As ervas naturais são, em boa verdade, uma bela porcaria. Crescem e pouco mais. Em contrapartida, as grandes empresas de farmacêuticos, nas quais as pessoas investigam e descobrem excelentes medicamentos, são a prova de que a natureza é verdadeiramente selvagem e ineficaz. Troco todos os chás à face da terra por um bom Lexotan. Aliás, os defensores das coisas «naturais» esquecem-se sempre que elas são apenas pontos de partida ou matérias-primas para aperfeiçoamentos humanos. A pedra é pedra. Miguel Ângelo é Miguel Ângelo.

Até o ser humano, como expressão física, é facilmente ultrapassado em beleza, perenidade e utilidade, pela maneira como foi desenhado, escrito, imaginado, pensado. Compare-se a existência em si com o pensamento acerca dele. A vida é pobre, a filosofia é rica. Ou menos pobre, pelo menos.

Bem sei que sou um caso extremo – prefiro uma lâmpada eléctrica à lua -, mas começo a desesperar com este irritantemente reincidente «regresso à natureza». A veneração do estado bruto das coisas existentes é cada vez mais popular. Estamos cada vez mais primitivos. A religião é que é bonita. Tudo o que abdica do humano é feio.

O erro é pensar que as pessoas são capazes de ser muito piores que a natureza (nenhum bicho é tão mau como uma pessoa má) e concluir que o melhor é ficar quieto. O que distingue o ser humano é ser capaz de bem ou de mal. De resto, a natureza, que é estúpida e material, também pode ser muito má (terramotos, etc.). Só que, como não se sabe, não se pode culpar ou castigar. Coitada. Ser pelas cidades, preferir Manhattan ao Grand Canyon, ou o Aqueduto das Águas Livres e o sistema de canalizações ao rio Tejo, não quer dizer que não haja cidades ou invenções sinistras (a grande maioria) – quer dizer que o ser humano é sempre capaz de melhor. Há péssimos vinhos e azeites, piores que comer uvas ou azeitonas – mas os resultados das uvas e das azeitonas bem usadas pelos seres humanos são não apenas melhores, mas têm outra ordem de grandeza. Comer tudo cru é um atentado, não só gastronómico, como à cultura.

A arte não «imita» a vida – a arte tem a capacidade de ser uma vida superior. O problema da actividade humana é que, em 99,9 por cento dos casos, falha e é, por conseguinte, pior que a natureza que modifica. Mas isso não quer dizer que as pessoas realmente bondosas ou sábias ou justas não sejam superiores ao animal mais nobre (até porque o protegem e se preocupam com ele, dedicando-lhe a vida se for preciso, coisa que os animais não fazem, não porque não sejam bons, mas porque não são capazes).

A obra dos grandes filósofos, teólogos, artistas e cientistas é melhor que os seres humanos que a produziram e ultrapassa a vida – ou, melhor, atinge a vida mais alta e preciosa que pode existir. As ideias religiosas e políticas que permitem que, em certas partes pequenas do Mundo, graças à intervenção de pessoas inspiradas por elas, a vida seja melhor do que seria se estivéssemos sozinhos, são sublimes porque são úteis. A solidariedade humana é uma ideia. É impossível comparar a bondade previsível dos animais (aquela gata que salvou os quatro filhotes do incêndio) com as consequências sociais dos pensamentos altruístas de muitos filósofos gregos ou dos sábios judeus do Talmude, de onde provém todo o pensamento e prática que acabam (começam) por criar (em pequenos recantos do Mundo) condições (mínimas) de assistência social.

É por ser capaz de se exceder que o ser humano é tantas vezes tão nocivo e tão mau. As ideias más são muito mais perigosas que a animalidade humana. Mas isso não defende a animalidade. O que é sublime no ser humano é, sendo mau, ser capaz de pensar o bem. A natureza não é boa nem má – é natural. Só o ser humano pode salvar (ou destruir) a humanidade, o planeta, e por aí fora. Por outras palavras, usá-lo para não subjugar os outros, sejam humanos ou não.

A ignorância humana é certamente mais nefasta que a consciência limitada dos outros animais ou a inconsciência dos outros seres vivos – mas a capacidade humana de se ultrapassar é também a grande esperança. No dia em que se consiga fazer a síntese da religião e da filosofia, praticamente aplicável, como há tantos séculos se vem tentando fazer, o Mundo poderá ser mais do que é.

O erro é abdicar do estudo, do pensamento, da devoção – o maior perigo é a facilidade. E a natureza é a coisa mais fácil e enganadora de todas. A única natureza é a humana.

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