RAP 1
Chover no molhado: sem desprimor para os restantes fedorentos, Ricardo de Araújo Pereira (Ricardo Pereira para a Dra. Fátima Campos Ferreira) é o melhor humorista português de há muitos anos a esta parte. Ponto final. Digo “humorista” porque o Ricardo está muito para além do estereótipo do comediante que, directamente do basfond da seita, surge para dizer umas chalaçazinhas, fazer umas palhaçadas e uivar de quatro. O Ricardo tem uma graça que é second nature. Não é pose, nem número. É genuína ou, como se costuma dizer por terras do Alentejo, “está-lhe na massa do sangue”. E, sublime vantagem, sem gritos, alaridos, sorrisos rasgados e cabotinismo à mistura. Talvez a grande diferença esteja no facto de o Ricardo ser um excelente “observador de caracóis”. Roubo o título ao livro de Patrícia Highsmith, mas os “caracóis” aqui somos nós (incluindo o Ricardo) mais as nossas ridicularias, absurdidades e parvoeiras. O barro que o Ricardo molda para seu e nosso prazer (imagem pirosa, eu sei), é constituído pelos nossos maneirismos, na forma como nos comportamos, pavoneamos, dizemos ou escrevemos umas patetices pegadas com o ar mais sério do mundo, na longa tradição familiar dos Franciscos Espertos, fonte inesgotável para quem tem talento. Que é o caso do Ricardo. Mais ainda porque o seu humor reflecte uma mistura equilibrada e «inteligente» de nonsense e ironia, aliada a uma notória fruição em se troçar do próprio umbigo. O pequeno texto que, agora, reproduzo, fala por si. Eu calo-me já.
DESCONTO DE NATAL
por Ricardo de Araújo Pereira
“Passou despercebido mais um belíssimo conto de Natal de João César das Neves, no Diário de Notícias de anteontem. Desta vez, o economista beato conta-nos a história de Maria, uma jovem cristã, e dos seus três amigos: o Fernando, que é ateu, a Cláudia, que é budista e o Ibrahim, que é muçulmano. Reside aqui, para mim, o primeiro golpe de génio de César das Neves: há mais raças e credos no grupo de amigos da Maria do que na ONU. “Temos parábola”, pensa o leitor, entusiasmado – e tem razão. “Tu queres ver que, no final, vamos descobrir que o cristianismo é superior às outras religiões?”, pergunta novamente o leitor – e volta a ter razão. Apelo agora ao leitor para que se cale, porque tenho coisas para dizer. A primeira é que o início do conto desilude: Maria aproxima-se dos amigos, que estão numa mesa da cantina da faculdade, e diz-lhes que descobriu uma coisa “hoje de manhã, no duche”. Todos sabemos que a única coisa literariamente interessante que uma jovem rapariga pode descobrir no duche é o seu próprio clítoris (a propósito: clítoris ou clitóris? Que diferença faz? Esdrúxulo ou grave, é igualmente difícil de encontrar...). Calculem o meu desapontamento quando constato que aquilo que Maria descobre no duche é o seguinte: “(...) os infiéis, mesmo sendo infiéis, são muito mais felizes no reino de Cristo do que julgam vir a ser nas suas crenças.” Segue-se uma conversa aborrecida sobre religião, em que aproveitamos para imaginar quão melhor seria o conto se Maria tivesse, de facto, descoberto o clítoris. Surpreendentemente, ninguém pergunta a Maria porque é que Deus, do alto da sua infinita bondade, dedicou a época natalícia a fazer umas brincadeiras no mar do sudoeste asiático e a matar 60 mil desgraçados. Apesar de tudo, no final, diz Ibrahim: “E se a gente se deixasse de conversas e se agarrasse à Matemática? Os testes são logo a seguir ao Ano Novo e, se não marrarmos agora, não há espírito de Natal que nos salve.” É a primeira coisa sensata que alguém diz no conto inteiro – e é proferida pelo muçulmano. E depois a cultura ocidental é que é superior.”
DESCONTO DE NATAL
por Ricardo de Araújo Pereira
“Passou despercebido mais um belíssimo conto de Natal de João César das Neves, no Diário de Notícias de anteontem. Desta vez, o economista beato conta-nos a história de Maria, uma jovem cristã, e dos seus três amigos: o Fernando, que é ateu, a Cláudia, que é budista e o Ibrahim, que é muçulmano. Reside aqui, para mim, o primeiro golpe de génio de César das Neves: há mais raças e credos no grupo de amigos da Maria do que na ONU. “Temos parábola”, pensa o leitor, entusiasmado – e tem razão. “Tu queres ver que, no final, vamos descobrir que o cristianismo é superior às outras religiões?”, pergunta novamente o leitor – e volta a ter razão. Apelo agora ao leitor para que se cale, porque tenho coisas para dizer. A primeira é que o início do conto desilude: Maria aproxima-se dos amigos, que estão numa mesa da cantina da faculdade, e diz-lhes que descobriu uma coisa “hoje de manhã, no duche”. Todos sabemos que a única coisa literariamente interessante que uma jovem rapariga pode descobrir no duche é o seu próprio clítoris (a propósito: clítoris ou clitóris? Que diferença faz? Esdrúxulo ou grave, é igualmente difícil de encontrar...). Calculem o meu desapontamento quando constato que aquilo que Maria descobre no duche é o seguinte: “(...) os infiéis, mesmo sendo infiéis, são muito mais felizes no reino de Cristo do que julgam vir a ser nas suas crenças.” Segue-se uma conversa aborrecida sobre religião, em que aproveitamos para imaginar quão melhor seria o conto se Maria tivesse, de facto, descoberto o clítoris. Surpreendentemente, ninguém pergunta a Maria porque é que Deus, do alto da sua infinita bondade, dedicou a época natalícia a fazer umas brincadeiras no mar do sudoeste asiático e a matar 60 mil desgraçados. Apesar de tudo, no final, diz Ibrahim: “E se a gente se deixasse de conversas e se agarrasse à Matemática? Os testes são logo a seguir ao Ano Novo e, se não marrarmos agora, não há espírito de Natal que nos salve.” É a primeira coisa sensata que alguém diz no conto inteiro – e é proferida pelo muçulmano. E depois a cultura ocidental é que é superior.”
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