O MacGuffin

quarta-feira, abril 16, 2003

SR. SARAMAGO: SÓ AGORA?

Parece que o estou a ver, sentado na ‘balcony’ de sua casa, com a paisagem lunar de Lanzarote à sua frente. Saramago, ainda de roupão, aguarda que Pilar, sua esposa devota, lhe sirva o pequeno almoço. Pilar chega, com torradas Panrico, leite Pascual e os jornais do dia. Antes de sorver um pouco de ‘leche’, Saramago folheia os jornais, com aquele ar blasé que tão bem o caracteriza. Depara-se com uma notícia que envolve o seu caro amigo Fidel num caso de execuções sumárias. Saramago lê e, em tom calmo e sereno, diz a Pilar: “Este Fidel afinal é um ditador. Passa-me aí a manteiga, Pilarzita.” Ao que Pilar responde: “Pois é. Andávamos enganados. Vou até Badajoz comprar caramelos. Queres de lá mais alguma coisa?” “Olha, traz-me uns sapatinhos Lotusse e o The Road To Serfdom do Hayek”.

O Sr. José Saramago terá despertado para a realidade cubana? Desculpem mas eu alinho nessa treta. Razões? Simplesmente esta: desde 1959 que Fidel perpetra atrocidades várias contra o seu povo e nunca antes Saramago havia proferido a mais leve crítica objectiva contra o regime de Fidel – um regime ditatorial ‘light’ que os esquerdistas adoram agitar como bandeira. Não que o Sr. Saramago não soubesse o que por lá se passava. O Sr. Saramago é apenas mais um intelectual ocidental (na esteira de Sartre) que, fora da sua actividade (neste caso de escritor), tem passado a vida inteira a fazer uma de duas coisas: ora a exercitar o mais canalha dos silêncios face às ditaduras de inspiração marxista-leninista, ora a comentar com complacência e despudor a natureza despótica desses mesmos regimes. Tudo em nome da ideologia e da luta contra o «inimigo» (os EUA, o capitalismo e o Ocidente, que o não compreende).

Eu tenho memória. Em 1998 – ou seja, há apenas 5 (cinco) anos atrás - o Sr. Saramago e o Sr. Vasco Gonçalves, numa viagem que fizeram a Cuba, esgrimiram algumas afirmações avulsas sobre a terrível sociedade ocidental. Que o comunismo estava vivo, que se recomendava e que apenas ele detinha a força e coerência necessárias para combater, sem tréguas, o capitalismo opressor e a submissão generalizada da humanidade face aos donos do capital (as balelas do costume). Nessa mesma entrevista, viraram-se para Cuba e para Fidel e apresentaram-no ao mundo como um exemplo vivo de solidariedade, justiça e liberdade. Em 1998 tinham passado 39 anos sobre a tomada do poder por Castro. Querem, portanto, convencer-me que só agora, 5 (cinco) anos após essa entrevista, e 44 (quarenta e quatro) anos depois, o Sr. Saramago terá despertado para a dura realidade cubana? Só agora o Sr. Saramago se terá inteirado das perseguições, torturas e aniquilamentos perpetrados ao longo dos anos de ditadura socialista Castrense? Só agora terá percebido que, desde 1959, mais de cem mil cubanos conheceram os campos de concentração, as prisões ou as frentes abiertas? Só agora terá tido conhecimento do fuzilamento de mais de quinze mil pessoas ao longo de todos estes anos? Só agora o Sr. Saramago terá ouvido falar do DSE - Departamento de Segurança do Estado, alcunhado de Gestapo Vermelha pelos cubanos? Só agora terá sabido que Castro promulgou uma lei, em 1978, segunda a qual se instituía a figura da “perigosidade pré-delituosa” em que um cubano, a partir de então, poderia ser preso desde que as autoridades considerassem que o indivíduo representava um perigo para a segurança do estado (mesmo que ele não tivesse praticado qualquer acto nesse sentido)? Não me lixem!

O Sr. Saramago disse o que disse porque, num mundo globalizado (bendita globalização!) em que tudo, mais tarde ou mais cedo, se sabe, seria obsceno e ridículo continuar a tapar o sol com a peneira. Há um limite a partir do qual a mentira se volta contra o mentiroso. O Sr. Saramago terá percebido isso porque ele não é parvo. Mais: o Sr. Saramago é um espertalhão. Numa época em que a ignorância em relação à História está instituída e a amnésia é profunda, querem apostar que ele ainda vai acabar como paladino da libertação do povo de Cuba? E, já agora, em Nobel da Paz?

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