Cutting the crap
Paulo Pinto de Albuquerque (aqui):
A Comissão Parlamentar de Inquérito pode conhecer e discutir as escutas ou o resumo das escutas realizadas legalmente em processo judicial. Dito de outra forma, a Constituição da República permite que este meio de obtenção de prova possa ser valorado pela Assembleia da República na sua tarefa de apuramento de responsabilidades políticas.
É certo que a Constituição proíbe a ingerência das autoridades públicas nas comunicações, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Mas esta proibição tem de ser conjugada com a competência, também ela constitucional, da CPI. Portanto, a ressalva do artigo 34.º, n.º 4 da Constituição inclui o processo criminal e o processo da CPI constitucionalmente equiparado. É que a Constituição refere-se aos poderes de investigação da CPI sem quaisquer restrições, tendo-se o legislador constituinte afastado claramente do modelo alemão mais restritivo. O carácter irrestrito dos poderes da CPI não pode deixar de ser compreendido como englobando a aquisição de meios de prova e de obtenção de prova, incluindo as escutas. Em suma, o conhecimento e a valoração das escutas ou dos seus resumos corresponde a um poder-dever constitucional dos deputados.
Acresce que, no caso em apreço, a CPI não adopta sequer qualquer medida de investigação que se traduza na imposição de novas restrições aos direitos fundamentais dos cidadãos, uma vez que as escutas já tinham sido realizadas no âmbito de um processo judicial e foram-no a coberto de uma autorização judicial. E também foi um juiz que facultou as escutas ou os seus resumos à CPI. Ao fazê-lo, o juiz cumpriu muito justamente o dever de colaboração das autoridades judiciais com a CPI, que só pode ser recusado quando dele derive prejuízo irreversível para uma investigação criminal. E este dever de colaboração impunha-se no caso, uma vez que a entrega das escutas ou dos resumos à CPI nenhum prejuízo traz para o prosseguimento do processo onde foram ordenadas e nenhum outro processo criminal foi aberto, até hoje, com o mesmo objecto da CPI. Aliás, seria incompreensível que a CPI não pudesse ter em conta prova incluída num processo judicial que mais tarde ou mais cedo vai ser público. Que credibilidade teria um relatório da CPI que ignorasse prova judicial que mais tarde ou mais cedo vai ser conhecida de todos os portugueses?
Dito isto, é importante notar que não se verifica qualquer partilha de funções jurisdicionais entre a Assembleia da República e os tribunais, que possa constituir infracção aos princípios constitucionais da independência do poder judicial e da reserva do juiz. A investigação levada a cabo por uma CPI, ainda quando tenha objecto matérias que estão ou já estiveram pendentes num tribunal, não é equiparável à instrução criminal, já que se situa num plano político e não judicial. Os fins prosseguidos pelos tribunais e pelas CPI são distintos, uma vez que os primeiros visam determinar a responsabilidade jurídica (civil, penal ou administrativa), ao passo que as segundas apenas procuram apurar a responsabilidade política ou simplesmente realizar uma tarefa de informação para o parlamento. Por isso também, o conhecimento das escutas pela CPI não está limitado aos crimes do catálogo legal do CPP.
O que a Constituição quis é que a verdade política se aproximasse o mais possível da realidade das coisas. E bem se compreende que assim seja. A Constituição quer facultar à CPI os mais amplos meios para descobrir a verdade dos factos, não permitindo que a verdade da política se converta numa fantasia. É que é a própria credibilidade do sistema político que está em causa.
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